quarta-feira, 2 de outubro de 2013

O tempo e o sofrimento - Krishnamurti

O homem vive do tempo. A invenção do futuro se tornou seu favorito jogo de fuga. Pensamos que as mudanças em nós mesmos só podem ser efetuadas no tempo, que a ordem só pode ser estabelecida em nós mesmos pouco a pouco, aumentada dia por dia. Mas, o tempo não traz a ordem nem a paz e, portanto, temos de deixar de pensar em termos de gradualidade. Isso significa que não há um amanhã em que viveremos em paz. Temos de alcançar a ordem imediatamente. 

Quando se apresenta um perigo real, o tempo desaparece, não é verdade? A ação é imediata. Mas, nós não percebemos o perigo existente em muitos dos nossos problemas e, por conseguinte, inventamos o tempo como um meio de superá-los. O tempo é um embusteiro, porquanto nada faz para ajudar-nos a promover uma mudança em nós mesmos. O tempo é um movimento que o homem dividiu em passado, presente e futuro. E, enquanto fizer essa divisão, o homem viverá sempre em conflito.

O aprender depende do tempo? Após tantos milhares de anos, ainda não aprendemos que existe uma maneira de vida melhor do que odiarmos e matarmos uns aos outros. Muito importa compreender o problema do tempo, se desejamos uma solução para esta vida que cada um de nós contribuiu para tornar tão monstruosa e sem significação como é.

A primeira coisa, pois, que se deve compreender é que só podemos olhar o tempo com aquele vigor e aquela inocência da mente, que já estivemos considerando. Vemo-nos confusos a respeito de nossos numerosos problemas, e perdidos no meio desta confusão. Ora, quando uma pessoa se perde numa floresta, qual a primeira coisa que faz? Pára e olha em torno de si. Mas nós, quanto mais nos vemos confusos e perdidos na vida, tanto mais corremos em todos os sentidos, buscando, indagando, rogando. A primeira coisa que deveis fazer, se me permitis sugeri-lo, é fazer alto, interiormente. E, quando parais, interiormente, psicologicamente, vossa mente se torna muito tranqüila e clara. Podeis então considerar verdadeiramente a questão do tempo. 

Os problemas só existem no tempo, isto é, quando nos encontramos com um fato de maneira incompleta. Esse encontro incompleto com o fato cria o problema. Quando enfrentamos um desafio parcial, fragmentariamente, ou dele tentamos fugir — isto é, quando o enfrentamos com atenção incompleta — criamos um problema. E o problema continua existente enquanto continuarmos a dar-lhe incompleta atenção, enquanto esperarmos resolvê-lo um dia destes.

Sabeis o que é o tempo? — Não o tempo medido pelo relógio, o tempo cronológico, porém o tempo psicológico? É o intervalo entre a idéia e a ação. Uma idéia visa, naturalmente, à autoproteção: a idéia de estar em segurança. A ação é sempre imediata; não é do passado nem do futuro; o agir deve estar sempre no presente; mas a ação é tão perigosa, tão incerta, que preferimos ajustar-nos a uma idéia que nos promete uma certa segurança.

Olhai isso em vós mesmo. Tendes uma idéia do que é certo ou errado, ou um conceito ideológico relativo a vós mesmo e à sociedade, e de acordo com essa idéia ides agir. A ação, por conseguinte, ajusta-se àquela idéia, aproxima-se da idéia, e por essa razão existe sempre conflito. Há a idéia, o intervalo, e a ação. Nesse intervalo encontra-se todo o campo do tempo. Esse intervalo é, essencialmente, pensamento. Quando pensais que amanhã sereis feliz, tendes então uma imagem de vós mesmo a alcançar um certo resultado no tempo. O pensamento, pela observação, pelo desejo, e pela continuidade desse desejo, sustentada por mais pensamento, diz: "Amanhã serei feliz; amanhã terei sucesso; amanhã o mundo será um belo lugar." Dessa maneira, o pensamento cria esse intervalo que é o tempo.

Agora, perguntamos: Pode-se deter o tempo? Podemos viver tão completamente que não haja um amanhã para o pensamento pensar nele? Pois o tempo é sofrimento. Isto é, ontem ou há um milhar de "ontens", amastes ou tínheis um companheiro que se foi, e essa memória perdura e ficais pensando naquele prazer ou naquela dor; estais a olhar para trás e a desejar, a esperar, a lamentar, e, assim, o pensamento, ruminando continuamente aquilo, gera essa coisa que se chama sofrimento e dá continuidade ao tempo. 

Enquanto existir esse intervalo de tempo, gerado pelo pensamento, tem de haver sofrimento, tem de haver a continuidade do medo. Assim, perguntamos a nós mesmos: Pode esse intervalo terminar? Se disserdes: "Terminará ele algum dia?", isso então já é uma idéia, uma coisa que desejais conseguir e, por conseguinte, tendes um intervalo e de novo vos vedes na armadilha.

Krishnamurti

segunda-feira, 11 de março de 2013

Sinais do Absoluto

Um casal europeu visitou Maharaj por uma semana. Marido e esposa estiveram interessados na metafísica vedântica por muitos anos e tinham estudado profundamente o assunto. Havia neles, contudo, um toque de cansaço, quase de frustração, em seus pontos de vista e comportamento geral, o qual mostrava claramente o que foi posteriormente confirmado. Eles não tinham nenhuma compreensão clara da verdade a despeito da assídua busca por um longo período de tempo durante o qual tinham viajado intensamente, e tinham buscado orientação de numerosos Gurus, mas sem sucesso. Agora, estavam, talvez, perguntando-se se iam para outro exercício de futilidade e para mais frustração.

Depois de terem fornecido as informações sobre seus fundamentos em resposta à pergunta habitual de Maharaj, sentaram-se com indiferença. Maharaj olhou para eles por poucos momentos e disse: Por favor, entenda que eu não tenho nada para dar a vocês. Tudo o que faço é pôr diante de vocês um espelho espiritual para mostrar sua verdadeira natureza. Se o significado do que digo for entendido claramente, intuitivamente – não apenas de forma verbal –, e aceito com a mais profunda convicção e a mais urgente rapidez, não será mais necessário nenhum conhecimento. Este entendimento não é uma questão de tempo (de fato, é anterior ao conceito de tempo) e, quando ele acontece, acontece repentinamente, quase como um choque de compreensão atemporal. Efetivamente, isto significa uma repentina cessação do processo de duração, uma fração de segundo em que o funcionamento do próprio processo do tempo é suspenso – enquanto acontece a integração com o que é anterior à relatividade – e a apreensão absoluta ocorre. Uma vez que esta semente de compreensão tenha se enraizado, o processo de libertação relativa da escravidão imaginada pode seguir seu próprio curso, mas a apreensão em si mesma é sempre instantânea.

A palavra-chave no processo de entendimento do que digo é ‘espontaneidade’. A manifestação de todo o universo é como um sonho, um sonho cósmico, exatamente como o sonho microcósmico de um indivíduo. Todos os objetos são objetos sonhados, todos são aparições na consciência, tanto no caso de um sonho surgindo espontaneamente como um sonho pessoal durante o sono ou como o sonho vivente da vida no qual nós todos estamos sendo sonhados e vividos. Todos os objetos, todas as aparições são sonhadas na consciência pelos seres sensíveis.

Os seres sensíveis são, portanto, tanto figuras sonhadas como sonhadores; não há um sonhador individual, como tal. Cada sonho ativo do universo está na consciência, a qual está no interior de um aparato psicossomático particular, o meio através do qual o perceber e o interpretar ocorrem, e que é confundido com uma entidade individual. No sono profundo não há sonho e, portanto, nenhum universo. É apenas quando você usa a mente dividida que você existe separado dos ‘outros’ e do mundo.

Você não tem controle sobre os objetos em seu sonho pessoal, incluindo o objeto que ‘você’ é em seu sonho. Tudo é espontâneo e, ainda assim, cada um dos objetos em seu sonho pessoal não é senão você. No sonho que é a vida, também, todos os objetos (todos os ‘indivíduos’, mesmo se são opostos um ao outro no sonho) podem apenas ser o que-você-é. Todo funcionamento, toda ação na vida, portanto, pode ser apenas ação espontânea, pois não há nenhuma entidade a realizar qualquer ação. Você é (Eu sou) o funcionamento, o sonho, a dança cósmica de Shiva!

Finalmente, lembre-se que todo sonho de qualquer tipo deve necessariamente ser fenomênico – uma aparição na consciência –, ocorrido quando a consciência estiver ‘desperta’, que é quando a consciência é consciente de si mesma. Quando a consciência não é consciente de si mesma, não pode haver nenhum sonho, como no sono profundo.

Ao chegar neste ponto, o homem do casal tinha uma dúvida. Sua pergunta era: Se todos nós somos figuras sonhadas, sem qualquer escolha independente de decisão e ação, por que deveríamos preocupar-nos com escravidão e liberação? Por que deveríamos vir para Maharaj?

Maharaj riu e disse: Você parece ter chegado à conclusão correta pelo caminho errado! Se você quer dizer que agora está convencido, além de qualquer sombra de dúvida, que o objeto com o qual você havia se identificado é realmente apenas um fenômeno totalmente destituído de qualquer substância, independência ou autonomia – simplesmente uma aparição sonhada na consciência de outro alguém – e que, portanto, para uma simples sombra não pode haver qualquer problema de escravidão ou liberação, e que, consequentemente, não há necessidade de forma alguma de vir e ouvir-me, então você está perfeitamente certo. Se for assim, você não está apenas certo, mas já liberado! Mas, se você quer dizer que deve continuar a visitar-me apenas porque não pode aceitar que é uma mera figura sonhada, sem qualquer independência ou autonomia, então receio que nem mesmo deu o primeiro passo. E, de fato, desde que haja uma entidade buscando a liberação, ela nunca a encontrará.

Veja isto desta forma simples: Qual é a base de qualquer ação? A necessidade. Você come porque há uma necessidade disto; seu corpo evacua porque é necessário. Você me visita por causa da necessidade de visitar-me e escutar o que digo. Quando há a necessidade, a ação se segue espontaneamente sem qualquer intervenção de qualquer agente. Quem sente a necessidade? A consciência, certamente, sente a necessidade através da mediação do aparato psicossomático. Se você pensar que é este aparato, não é este o caso de identidade errada, assumindo a carga da escravidão e buscando a liberação? Mas na realidade o que pergunta, o buscador, é o buscado!

Uma calma absoluta reinou na salinha enquanto todos ponderavam sobre o que Maharaj havia dito. O casal visitante sentou com os olhos fechados, esquecido dos arredores, enquanto os demais visitantes, gradualmente, saiam.

"Sinais do Absoluto"

quarta-feira, 6 de março de 2013

Eu Sou Aquilo - N. Maharaj

Pergunta: Sou médico de profissão. Comecei com cirurgia, continuei com psiquiatria e também escrevi alguns livros sobre a saúde mental e a cura pela fé. Venho a você para aprender as leis da saúde espiritual.

Maharaj: Quando você tenta curar um paciente, o que tenta curar exatamente? O que é a cura? Quando você pode dizer que o homem está curado?

P: Eu procuro curar o corpo assim como melhorar a ligação entre o corpo e a mente. Também procuro colocar a mente em ordem.

M: Você investigou a conexão entre a mente e o corpo? A que ponto eles estão conectados?

P: A mente está entre o corpo e a consciência que o habita.

M: O corpo não é feito de alimentos? E pode existir uma mente sem alimento?

P: O corpo é construído e mantido pelo alimento. Sem alimento, a mente usualmente fica fraca. Mas a mente não é mero alimento. Há um fator transformador que cria a mente no corpo. O que é este fator transformador?

M: Assim como a madeira produz fogo que não é madeira, o corpo produz a mente que não é corpo. Mas a quem aparece a mente? Quem é o percebedor dos pensamentos e sentimentos que você denomina mente? Há madeira, há fogo e há o desfrutador do fogo. Quem aprecia a mente? O desfrutador é também um resultado do alimento, ou é independente?

terça-feira, 5 de março de 2013

Sinais do Absoluto - N. Maharaj

Neste ponto, a questão que permanece a ser tratada, a fim de fazer esta meditação razoavelmente completa em si mesma, é salientar a identidade essencial entre o não-manifesto e o manifesto, o númeno e o fenômeno, o Absoluto e o relativo, a presença e a ausência e, de fato, a identidade essencial de todos os opostos, ou contrapartidas, inter-relacionados. Todas estas posições representam os vários aspectos da mente (sendo a mente o conteúdo da consciência) que constituem o dualismo o qual é a base de toda a manifestação: o observador e o observado, o conhecedor e o conhecido. Como diz Maharaj, a apercepção da identidade básica dos opostos inter-relacionados significa ‘liberação’, pois, então, será entendido que o buscador é o buscado, que todas as distinções existem apenas na dualidade, e que, se os vários opostos inter-relacionados forem sobrepostos uns aos outros, resultariam na anulação dos opostos correspondentes, e, com isto, a da própria condição da dualidade, produzindo, assim, a unidade fundamental.

Talvez seja necessário repetir aqui que a consciência é manifestação e que a manifestação está na dualidade, mas esta dualidade é criada dentro da unicidade do Absoluto não-manifesto. A totalidade da manifestação não é algo projetado pela consciência quando entra em atividade; os vários objetos que constituem a manifestação não têm substância ou natureza própria senão a da consciência, a qual, em si mesma, é a percepção e o conhecimento dos fenômenos. O fato é que toda a manifestação, todo fenômeno, é aparência na consciência, percebida pela consciência, e conhecida por ela através da interpretação da mente. Se este fato for claramente percebido e entendido, poderá ver-se que a consciência é tanto o funcionamento que acontece quanto o seu percebimento – e nós (não os indivíduos, mas o ‘Eu’ eterno) somos este percebimento. A consciência em ação não pode ser diferente da consciência em repouso, a Consciência Absoluta, que é a totalidade do potencial completo. Em outras palavras, a consciência-manifestação é o aspecto objetivo da Consciência subjetiva.

Uma vez que a consciência se mova e a atividade comece, a manifestação e o funcionamento podem acontecer apenas em um estado de aparente dualidade. O ‘espaço’ é o aspecto estático do conceito de funcionamento: se não houvesse espaço, nenhum fenômeno com volume tridimensional poderia ser concebido. E o ‘tempo’ (duração) é o aspecto ativo do conceito de funcionamento: se não houvesse duração, os fenômenos concebidos no espaço não seriam perceptíveis. Não pode haver nem manifestação nem funcionamento (nem seres humanos nem fatos) na ausência do conceito dual de espaço e tempo, conhecido como ‘espaço-tempo’; e estes dois aspectos são separados apenas como conceito, mas perdem sua separação quando a concepção cessa. No sono profundo, por exemplo, espaço e tempo desaparecem e, com eles, toda a manifestação, pois a dualidade pode existir apenas na concepção. Paremos o pensamento e toda a dualidade desaparece.

Os fenômenos, em outras palavras, não podem ser concebidos sem o númeno, nem o númeno sem os fenômenos. (A própria idéia de númeno está, certamente, dentro da área da dualidade da concepção). Quando cessa a concepção, toda a dualidade chega ao fim. Quando a concepção cessa, não haverá nem fenômeno nem númeno, pois o que permanece é pura subjetividade – nenhuma experiência de qualquer tipo e ninguém a exigir alguma experiência! Expressando tudo isto em resumo: todas as contrapartidas inter-relacionadas são inevitavelmente separadas apenas como conceitos e, essencialmente, inseparáveis de qualquer forma.

Sinais do Absoluto - Nisargadatta Maharaj (Ramesh Balsekar)