F. Hartmann/J. Boehme

JACOB BOEHME
O FILÓSOFO INSTRUÍDO POR DEUS
UMA INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS DE SUAS OBRAS
POR
FRANZ HARTMANN

"Meus escritos são para aqueles que desejam receber a verdade, num estado de mente simples e infantil, pois eles possuirão o reino de Deus. Escrevi unicamente para aqueles que buscam; para os astutos e expertos, nada tenho a dizer". (Threefold Life, xv.65)
"Nem o dinheiro, nem as posses mundanas, nem a ciência, nem a autoridade, nada disso trará a vós o doce descanso do paraíso, que só pode ser atingido através do nobre conhecimento de si mesmo. Lá poderás vestir tua alma; trata-se da pérola que não é devorada pelas traças, e que nenhum ladrão pode levar. Busque-a, e encontrarás um nobre tesouro". (Three Principles, ix.1)
"Não escrevo com outro objetivo senão que o homem aprenda a conhecer a si mesmo". (Three Principles, IV.64)
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PREFÁCIO
Este livro é uma tentativa de apresentar um compêndio das principais doutrinas de Jacob Boehme em uma certa ordem sistemática, que possa proporcionar uma visão geral e servir também de introdução ao estudo das obras de Jacob Boehme. Segui aqui o plano traçado pelo excelente, mas muito raro livro do Dr. J. Hamberger. Os títulos dos parágrafos têm o objectivo de resumir as citações que os seguem. Tais citações foram, em muitos casos, condensadas, e em alguns casos tentei inseri-las numa fraseologia mais moderna e compreensível do que aquelas verificadas no original, já que estas se apresentavam de forma obscura e intraduzível. Assim agi porque me pareceu muito mais importante que o público, a quem este livro é dirigido, pudesse obter uma visão compreensível das doutrinas de Boehme, do que unicamente o filólogo erudito conseguir saciar sua curiosidade, captando a exacta forma em que Boehme encerrou seus pensamentos. Ao adicionar algumas notas, não tive a presunção de querer aperfeiçoar, comentar, explicar ou esclarecer os escritos de Boehme; é evidente que para ser capaz de criticar, completar ou explicar o conteúdo de um livro divinamente inspirado, o crítico ou aquele que explica necessariamente teria que ter a mesma inspiração divina. Não tenho tal arrogante pretensão; mas quero chamar a atenção do leitor para certos pontos que possam auxiliar sua compreensão.
Comparei, cuidadosamente, as doutrinas de Jacob Boehme com aquelas dos sábios orientais, como as mencionadas na "Doutrina Sagrada" e na literatura religiosa do Oriente; encontrei a mais notável harmonia entre elas quanto ao seu significado esotérico; de fato, a religião de Buda, Krishna e aquela do Cristo me parecem ser uma mesma e idêntica religião. O maior obstáculo para a compreensão dos mistérios da religião do Cristo vivo é a visão bastante estreita que estamos acostumados a ter com relação a tais mistérios, sempre de acordo com a mera interpretação externa e superficial do Velho e do Novo Testamentos, tais como são ministrados pelas igrejas modernas e pelo clericalismo da moda, que se referem a estas doutrinas a partir de um ponto de vista meramente histórico ou emocional.
Um estudo sobre os escritos de Jacob Boehme, que tenha por meta penetrar o espírito com o qual foram escritos, irá com certeza expandir a mente e elevar o coração do leitor, dando-lhe um maior e muito mais sublime concepção de Deus, da Natureza e do homem, do que qualquer outro livro que conheço.
Devo muito a Senhora E. B. Penny, de Cullompton, por seu auxílio nesta difícil tarefa, e também ao Senhor G. W. Redway por suas valiosas sugestões.
Os extratos foram tirados das Obras Completas de Boehme, Amsterdam, 1682.
Franz Hartmann
VIENNA, Setembro 1890.
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A VIDA DE JACOB BOEHME
"A plenitude do tempo aconteceu, e o reino de Deus chegou. Arrependa-se e acredite no evangelho da verdade".
Jacob Boehme
Jacob Boehme nasceu no ano de 1575 em Alt Seidenburg, a cerca de Goerlitz, Alemanha. Filho de camponeses pobres cuidava do gado de seus pais. Foi mais tarde enviado à escola, onde aprendeu a ler e a escrever e tornou-se aprendiz de sapateiro.
Tudo indica que mesmo ainda muito jovem, já era capaz de entrar num estado anormal de consciência, e captar imagens na luz astral; certa vez, enquanto cuidava do gado, no topo de uma montanha, viu a abertura de uma caverna, construída de pedras vermelhas e rodeada de arbustos. Ele entrou na caverna e no fundo desta viu um recipiente cheio de dinheiro. Apesar do que estava vendo, não experimentou nenhum desejo de tomar aquele tesouro para si; mas supondo que era uma obra dos espíritos das trevas, a fim de colocá-lo em tentação, foi embora.
Em outra ocasião, encontrava-se sozinho na sapataria onde trabalhava, quando um estranho apareceu, querendo comprar um par de calçados. Boehme, não se julgando capaz de comercializar na ausência de seu patrão, mencionou um preço bastante elevado, esperando se livrar do comprador. No entanto, o estranho comprou os sapatos e deixou a sapataria. Quando saiu, o estranho parou em frente ao estabelecimento e com uma voz alta e solene chamou: "Jacob, venha para fora".
Boehme ficou bastante admirado ao ver que o estranho sabia seu nome e foi ao seu encontro; o estranho, pegando em sua mão e olhando nos seus olhos de forma penetrante e profunda, pronunciou as seguintes palavras: "Jacob, agora és pequeno, mas tu te tornarás um grande homem, e o mundo irá te admirar. Seja piedoso, viva no temor de Deus e honre a Sua palavra. Eu te exorto especialmente a ler a Bíblia; ali encontrarás conforto e consolo, pois terás que enfrentar problemas, pobreza e perseguições. Não temas, mas fique firme; Deus te ama, e é gracioso para contigo". O estranho apertou mais uma vez a mão de Boehme, deu-lhe mais um olhar gentil e se foi.
Este acontecimento notável provocou um grande impacto em sua mente. Jacob Boehme passou sinceramente pelos exercícios necessários ao estudo do ocultismo prático; praticou a paciência, a piedade, a simplicidade de pensamento e de propósito, a modéstia, a resignação de sua vontade-própria à lei divina, e manteve na mente a promessa Bíblica de que aqueles que pedirem sinceramente a comunicação do Espírito Santo terá o espírito da santidade despertado em si, e serão iluminados com Sua sabedoria.
Tal iluminação, de fato, ocorreu em sua mente, e por sete dias consecutivos Jacob Boehme esteve num estado de êxtase, durante os quais foi rodeado pela luz do Espírito, e sua consciência permaneceu imersa na contemplação e na alegria. O que
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ele viu durante estas visões não foi declarado; tal declaração tampouco satisfaria a curiosidade do leitor; pois as coisas do Espírito são inconcebíveis para a mente externa, e só podem ser percebidas por aqueles que elevando-se acima do domínio dos sentidos e penetrando um estado superior de consciência, pode percebê-los. Tal estado não exclui necessariamente o exercício das faculdades exteriores; pois enquanto Platão fala de Sócrates, dizendo que este, certa vez, permaneceu imóvel por um dia e meio no mesmo lugar, em estado de êxtase, no caso de Jacob Boehme sabemos que sob uma condição similar ele continuou com as ocupações externas de sua profissão.
Em 1594, ele se tornou sapateiro, e casou-se com uma mulher com quem viveu por trinta anos; eles tiveram quatro filhos que seguiram a mesma profissão do pai.
Em 1600, aos vinte e cinco anos, ocorreu em sua mente, uma outra iluminação divina; desta vez ele aprendeu como conhecer o mais íntimo fundamento da natureza, e a adquirir a capacidade de ver com os olhos da alma no coração de todas as coisas, faculdade que permaneceu com ele até mesmo em sua condição normal.
Dez anos mais tarde, em 1610, ocorreu sua terceira iluminação, e o que anteriormente lhe apareceu de forma caótica e fragmentada foi desta vez reconhecido como unidade, como uma harpa de muitas cordas, onde cada corda é um instrumento separado, enquanto que o todo é senão uma harpa. Ele reconhece agora a divina ordem da natureza, e como que do tronco da árvore da vida nascem diferentes galhos, carregando múltiplas folhas, flores e frutos, e foi tocado pela necessidade de escrever o que viu e de preservar este registro.
Assim, no início de 1612, até o fim de sua vida em 1624, ele escreveu vários livros sobre as coisas que viu na luz de seu próprio espírito; foram trinta livros repletos dos mais profundos mistérios de Deus e dos anjos, do Cristo e do homem, do céu, do inferno e da natureza e sobre as coisas secretas do mundo; não se sabe de ninguém antes dele que tenha comunicado a este mundo pecador, tudo o que ele comunicou, não para o benefício terrestre, mas para a glorificação de Deus e para a redenção da humanidade da ignorância com relação as coisas do Espírito.
Ele ensinou uma concepção de Deus muito grande para ser apreendida pelo mente estreita do clero, que viu sua autoridade enfraquecida por causa de um sapateiro pobre; seus membros tornaram-se seus inimigos impiedosos; pois o Deus então concebido, era um Ser limitado, uma Pessoa que na ocasião de Sua morte entregou Seus poderes divinos nas mãos do clero, enquanto que o Deus de Jacob Boehme ainda vivia e preenchia o universo com Sua glória. Ele diz:
"Eu reconheço um Deus universal, sendo uma Unidade, e o poder primordial do Bem no universo, auto existente, independente de formas, que não necessita de lugar para a sua existência, imensurável e não sujeito à compreensão intelectual de nenhum ser. Reconheço esse poder como sendo uma Trindade em Um, onde cada um dos três seres Pai, Filho e Espírito Santo, tem o mesmo poder. Reconheço que esse princípio ternário preenche de uma só vez e ao mesmo tempo todas as coisas; que esta tem sido e continua sendo a causa, fundamento e princípio de todas as coisas. Eu acredito e reconheço que o poder eterno deste princípio causou a existência do universo; que seu poder, de certa forma comparável a um hálito ou palavra (o Verbo, o Filho ou Cristo), radiou de seu centro, produzindo os germes dos quais surgiram as formas visíveis, e que neste hálito exalado ou Verbo (o Logos) está contido o céu interno e o mundo visível com todas as coisas existindo dentro deles".
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Mais que nada, ele ensinou que para ser um verdadeiro Cristão não bastava se submeter a certas crenças; mas que somente aquele em quem o Cristo está vivo é um verdadeiro seguidor de Cristo em espírito e em verdade.
"Só é um verdadeiro Cristão aquele cuja alma e mente tenham penetrado novamente à matriz original, da qual a vida do homem tomou sua origem; ou seja, o Verbo eterno. Esse Verbo foi revelado em nossa natureza humana, que não enxerga a presença de Deus; aquele que absorve esse Verbo com a alma faminta, retornando ao estado espiritual original de onde a humanidade teve sua origem, tem sua alma transformada num templo do amor divino, onde o Pai recebe o Seu Filho amado. Nele residirá o Espírito Santo".
"Só aquele em quem o Cristo existe e vive é um Cristão, um homem em quem o Cristo surgiu da carne estéril de Adão. Ele será um herdeiro de Cristo – não por conta dos méritos de alguém, nem por nenhum favor conferido à ele por algum poder externo, mas pela graça interna. Acreditar meramente num Cristo histórico, satisfazer-se com a crença de que em algum lugar do passado, Jesus morreu para satisfazer a cólera de Deus, não faz um Cristão. Tal Cristão especulativo, não passa de um fraco demônio, pois todo mundo gostaria de obter, sem nenhum esforço de si mesmo, algo bom que, na realidade, não merece. Aquele que nasce da carne não pode penetrar o reino de Deus, é preciso renascer no Espírito".
"Nenhum palácio de pedras ou caríssimas casas de adoração irá regenerar o homem; mas o sol espiritual divino, existente no céu divino, atuando através do poder divino do Verbo de Deus, no templo de Cristo. Um verdadeiro Cristão não deseja nada além do que aquilo que o Cristo em sua alma deseja".
"Todos os nossos sistemas religiosos não passam de obras do intelecto. Devemos repudiar todos os desejos pessoais, disputas, ciência e vontade, se quisermos restaurar a harmonia com a mãe que nos deu nascimento no princípio; no momento, nossa alma é o quintal de centenas de animais maliciosos, que nós mesmos colocamos lá, no lugar de Deus, e aos quais adoramos como se fossem deuses. Tais animais devem morrer antes que o princípio Crístico possa começar a viver. O homem deve retornar ao seu estado natural (pureza original), antes de poder tornar-se divino".
"Não há outra maneira do Cristo viver senão através da morte do velho Adão; um homem não pode se tornar um deus e ao mesmo tempo permanecer um animal. Ninguém é salvo por Deus, como uma marca de Sua gratidão, por ter frequentado à igreja e por ter tido a paciência de ouvir aos sermões; frequentar cerimonias externas só é um benefício quando o homem escuta o Cristo falar em seu próprio coração".
"Todas as nossas brigas e especulações intelectuais com relação aos mistérios divinos são inúteis, pois se originam de fontes externas. Os mistérios de Deus só podem ser conhecidos por Deus; para conhecê-los devemos primeiro buscar à Deus em nosso próprio centro. Nossa razão e vontade devem retornar à fonte interior do qual se origina; então iremos chegar à verdadeira ciência de Deus e Seus atributos".
"A vontade e a imaginação do homem perverteram-se de seu estado original. O homem se rodeou pelo mundo de sua própria vontade e imaginação. Com isso, perdeu Deus de vista, e só pode recuperar seu estado anterior e se tornar um sábio, se colocar a atividade de sua alma e mente novamente em harmonia com o Espírito divino".
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"Um Cristão é aquele que vive em Cristo, e em quem o poder de Cristo está activo. Ele deve sentir o fogo divino do amor queimar em seu coração. Este fogo é o espírito de Cristo, que constantemente pisa na cabeça da serpente, ou no desejo da carne. A carne é governada pela vontade do mundo; mas o fogo espiritual no homem é aceso pelo Espírito. Aquele que quer se tornar um Cristão não deve dizer orgulhosamente: "Eu sou um Cristão!" deve desejar se tornar um Cristão, e preparar todas as condições necessárias para que o Cristo viva nele. Tal Cristão poderá ser desprezado e perseguido pelos Cristãos nominais de seu tempo; mas ele deve carregar sua cruz, e assim se tornará forte".
"Os teólogos e cristãos sectários estão sempre discutindo a cerca da letra e da forma, não cuidam do espírito, sem o qual a forma fica vazia e a letra morta. Cada um imagina possuir a verdade, e quer ser admirado pelo mundo como aquele que possui a verdade. Para tanto, denunciam, difamam e atacam uns aos outros, agindo contra o primeiro princípio ensinado por Cristo, que é o amor fraternal. Assim, a Igreja de Cristo tornou-se um bazar onde a vaidade é exibida, e assim como os Israelitas dançaram ao redor do bezerro de ouro, os Cristãos modernos dançam ao redor dos fetiches que eles mesmos construíram, fetiches que chamam de Deus; é por causa da adoração destes fetiches que eles não poderão entrar na terra prometida".
"Toda a religião Cristã está baseada no conhecimento de nossa origem, de nossa actual condição e de nosso destino. Ela mostra primeiro como que da unidade caímos na variedade, e como podemos retornar ao estado primordial. Segundo mostra o que éramos antes de nos tornarmos desunidos. Em terceiro lugar, explica a causa da continuação de nossa presente desunião. E, em quarto lugar, nos instrui sobre o destino final dos elementos mortais e imortais dentro de nossa constituição".
"Todos os ensinamentos de Cristo, não tem outro objetivo do que mostrar o caminho para reascender de um estado de variedade e diferenciação para nossa unidade original; aquele que ensina de outra forma, ensina um erro. Todas as doutrinas que foram agregadas a esta doutrina fundamental, e que não está de acordo com ela, não passam de produtos de tolos mundanos, que se julgam sábios; são meros ornamentos inúteis que irão criar erros e que pretendem jogar areia nos olhos do ignorante".
"Aquele que pretende se estabelecer como mestre espiritual, sem qualquer poder espiritual de perceber a verdade, pensando servir à Deus, ensinando o reino de Deus, do qual ele não sabe praticamente nada, não serve ao verdadeiro Deus, serve a si mesmo, cuidando e alimentando sua própria vaidade. Ele pode ter sido nomeado legalmente pelo escritório clerical e mesmo assim não ser um verdadeiro pastor. O Cristo diz: ‘Aquele que não entra no estábulo das ovelhas pela porta, mas pela janela, é um ladrão e assassino, e as ovelhas não o seguirão, pois não conhecem a sua voz’. Ele não possui a voz de Deus, unicamente a voz de seu ensinamento. Diz o Cristo: ‘Todas as plantas que não foram plantadas pelo meu Pai celeste, devem ser arrancadas e destruídas’. Como pode então, aquele desprovido de Deus, tentar plantar plantas celestes, sem ter a semente espiritual e o poder? Para ser um verdadeiro mestre espiritual, é preciso ensinar no Espírito de Deus e não no espírito do egocentrismo".
Com relação a distinção entre fé e crença, Boehme diz: "Uma crença histórica não passa de uma opinião baseada em alguma explicação da letra da palavra escrita que se adota para si, opinião esta adquirida nas escolas, ouvidas pelo ouvido externo e que produzem dogmatas, sofistas e palpiteiros servos da letra. Mas a Fé é o resultado da
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direta percepção da verdade, ouvida e compreendida pelo sentido interno, ensinada pelo Espírito Santo e produzida pelos teósofos e servos do divino Espírito".
Quanto a questão do pecado, se o homem pode ou não ser perdoado por um padre, sua opinião não deixa dúvidas: "Nenhum pecado pode ser tirado através da absolvição sacerdotal. Se Cristo ressuscitar no coração, o velho Adão será morto e com eles os pecados cometidos. Se o sol surge, a noite será engolida pelo dia e não mais existirá. Finjam, gritem, chorem, cantem, preguem, e ensine o quanto quiserem, de nada irá adiantar enquanto o mal existir em seu coração. Se eu me confessar durante 1000 anos, e tiver um sacerdote para me absolver todos os dias e além disso receber o sacramento a cada quatro semanas, de nada vai adiantar se eu não tiver o Cristo em mim. Um animal que vai à igreja, sai um animal, não importa a que cerimónia tenha assistido.
"Os cristãos modernos possuem um templo de pedras, onde servem a deusa da vaidade, onde se enganam, onde as pessoas exibem suas melhores roupas e o pregador aquilo que aprendeu.; o verdadeiro Cristão tem sua igreja na alma, onde ele prega e escuta. Essa igreja está com ele e está nele onde quer que vá, ele está sempre em sua igreja. Sua igreja é o templo de Cristo, onde o Espírito Santo prega a todos os seres, e em tudo o que faz ouve o sermão de Deus".
"O verdadeiro Cristão não pertence a nenhuma seita particular. Ele pode participar de cerimônias de qualquer seita sem pertencer a nenhuma delas. Ele possui uma única ciência, que é a do Cristo interior; ele só tem um desejo, fazer o bem. Olhe para as flores do campo. Cada uma possui seu atributo particular, no entanto elas não brigam e nada disputam. Elas não disputam a posse do raio de sol ou da chuva; não brigam por causa de suas cores, perfumes e sabores. Cada uma cresce de acordo com a sua natureza. O mesmo ocorre com os filhos de Deus. Cada um possui seus próprios dons e atributos, mas todos surgem de um Espírito. Eles apreciam seus dons, e louvam a sabedoria Daquele de quem tiveram a sua origem. Por que disputariam as qualidades Dele, cujos atributos estão manifestados neles mesmos?".
"Todos nós temos uma única ordem à qual pertencemos, e a única regra desta ordem é realizar a vontade Deus, quer dizer, ficar quietos e servir como instrumentos através do qual Deus possa realizar a Sua vontade. O que quer que Deus semeie e manifeste em nós, devolvemos à Ele como Seu próprio fruto. O reino do céu não está baseado em nossas opiniões e crenças autorizadas, mas enraíza-se em seu próprio poder divino. Nosso objetivo maior deve ser o de ter o poder divino em nós. Se o possuímos, toda busca científica será uma mera brincadeira das faculdades intelectuais com a qual nos distraímos; a verdadeira ciência é a revelação da sabedoria de Deus em nossa própria mente. Deus manifesta Sua sabedoria através de Seus filhos, assim como a terra manifesta seus poderes através da produção de várias flores e frutos. Portanto, que cada um fique contente com seus próprios dons e aprecie o Dom dos outros. Por que ser tudo semelhante? Quem condenaria os pássaros da floresta por não cantarem no mesmo tom? Cada um louva seu Criador à seu modo. No entanto, o poder que os permite cantar emana de uma única fonte ".
Sua primeira obra, intitulada "Aurora" (o princípio de um novo dia), ainda não estava terminada quando por indiscrição de um amigo, cópias do manuscrito chegaram as mãos do clero. O vigário geral de Goerlitz, Gregorius Richter, uma pessoa inteiramente incapaz de conceber as profundezas daquela religião que professava 8
ensinar, na ignorância dos divinos mistérios da verdadeira Cristandade, da qual não sabia nada além de seu aspecto formal e superficial, demasiadamente vão para suportar com tolerância que um sapateiro pobre possuísse qualquer conhecimento espiritual, que ele, o vigário bem alimentado, não possuía, tornou-se o inimigo mais amargo de Jacob Boehme, denunciando e amaldiçoando o autor de tal livro, sendo que seu ódio chegou ao mais alto grau, diante da humildade e modéstia com que Boehme recebeu os insultos e denúncias dirigidas a ele.
Logo, o intolerante vigário acusou publicamente Boehme, no púlpito, de ser um perturbador da paz e um herético, pedindo que o promotor da cidade de Goerlitz punisse o traidor, ameaçando que se ele não fosse expulso da cidade, a cólera de Deus seria despertada, fazendo com que toda a cidade fosse engolida pela terra, da mesma maneira que Korah, Dathan e Abiram pereceram diante da resistência à Moisés, o homem de Deus.
Em vão Jacob Boehme tentou argumentar pessoalmente com o enfurecido Doutor da Divindade. Novas maldições e insultos resultaram de sua entrevista com o vigário, que ameaçou condena-lo e mantê-lo na prisão. O promotor da cidade temia ao vigário, e, embora não pudesse concretizar nenhuma culpa contra Boehme, ordenou que ele deixasse a cidade, temendo as conseqüências que pudessem resultar caso não concordasse com a solicitação do Reverendo Richter.
Pacientemente, Boehme se submeteu ao injusto decreto. Ele pediu permissão para despedir-se da família, antes de ser banido, e até isso lhe foi negado. Sua única resposta foi; "Muito bem; se não pode ser de outra maneira, me conformarei".
Boehme partiu; mas na noite seguinte a coragem invadiu os corações e um melhor julgamento, a cabeça dos conselheiros. Eles reprovaram a si próprios por terem banido um homem inofensivo, e no dia seguinte chamaram Jacob Boehme de volta, permitindo que ficasse, estipulando, contudo, que lhes entregassem os manuscritos da "Aurora", e que dali por diante se abstivesse de escrever livros.
Por sete anos Boehme, em obediência a este estúpido decreto, deixou de registrar as experiências que desfrutou no seio do espírito, e ao invés de trazer luz à humanidade, se contentou em consertar seus sapatos. Dura foi a batalha para represar as ondas do espírito, que com força e poder descia sobre sua alma; por fim, encorajado pelos amigos, que o aconselharam a não mais resistir ao impulso vindo de Deus, por temer desobedecer autoridades constituídas pelo homem, ele voltou a escrever.
Os escritos de Jacob Boehme, rapidamente rodaram o mundo, atraindo a atenção daqueles capazes de compreender e apreciar seu verdadeiro carácter. Ele encontrou muitos amigos e seguidores entre os mais altos e os mais baixos, o rico e o pobre; isso provocou uma nova expansão do Espírito da Verdade no domínio sacerdotal e na intolerante Alemanha.
Jacob Boehme escreveu então vários livros e panfletos: "Aurora", "Os Três Princípios do Ser Divino", "A Vida Ternária do Homem", "A Encarnação de Jesus Cristo", "Os Seis Pontos Teosóficos", "O Livro dos Mistérios Celestes e Terrestres", "Cálculo Bíblico da Duração do Mundo", "As Quatro Naturezas", sua "Defesa"; o livro sobre "A Geração e a Signatura de todas as coisas", sobre o "Verdadeiro Arrependimento", a "Verdadeira Regeneração", "A Vida Supra-sensível", "A Regeneração e a Contemplação Divina", "A Eleição da Graça", "O Baptismo Santo", "A Santa
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Comunhão", "Diálogo entre uma Alma Iluminada e uma Alma não Iluminada", um ensaio sobre "Oração", "Tábuas dos Três Princípios da Manifestação Divina", "Chave para os Pontos mais Importantes", "177 Questões Teosóficas", "Letters Teosóficas", e outros trabalhos menores e artigos relacionados a matérias filosóficas.
Em Março de 1624, um pouco antes de sua morte, Jacob Boehme passou por grande sofrimento. Em 1623, Abraham von Frankenburg publicou algumas das obras de Boehme sob o título: "O Caminho para Cristo"; o aparecimento deste livro, repleto de luz divina, inflamou novamente a inveja e a raiva do colérico vigário de Goerlitz, que não gostou nada de ver a grande satisfação com que este livro foi recebido por todas as mentes iluminadas. Com grande fúria ele retomou a perseguição à Boehme, amaldiçoando-o e condenando-o no púlpito e publicou contra ele uma sátira, cheia de insultos pessoais e termos de baixo calão, desprovida de razão e lógica, que só o cérebro de um insano, atormentado pela paixão poderia inventar ou tramar.
Desta vez, Boehme não permaneceu tão passivo como da primeira vez, mas entregou ao Promotor da cidade uma defesa, justificando o que havia feito; além disso, respondeu a todas as objecções de Richter de forma tranquila e dignificante, aniquilando seus argumentos pela força de sua lógica e pelo poder da verdade. Tal defesa não continha um estilo irónico, mas era impregnada de amor e piedade pelo homem desencaminhado; modesto e eloquente ao nível que dificilmente se poderia encontrar, mesmo entre os maiores oradores.
O promotor, contudo, tendo sido, mais uma vez, intimidado pelo vigário, não aceitou a defesa de Boehme, e expressou o desejo de vê-lo deixar a cidade espontaneamente; tal desejo foi expresso na forma de um conselho bem intencionado, salvando-o de cair na sorte dos heréticos, que era a de ser queimado vivo numa estaca, por ordem do Kurfürst ou Imperador, que estava disposto a mandar um ouvidor para junto dos representantes do clero, mostrando que não hesitaria em requerer tal ordem, se esta fosse a vontade do clero, já que se tratava de algo insignificante, como a execução de um problemático perturbador da paz.
Boehme sabia muito bem se tratar de uma ordem disfarçada e deixou Goerlitz em 9 de Maio de 1624, indo para Dresden, onde encontrou asilo na casa de um médico chamado Dr. Benjamim Hinkelman. Ali ele recebeu muitas honras e ofertas de auxílio, mas permaneceu modesto, escrevendo a um amigo que não confiaria em nenhum homem, mas no Deus vivo; assim procedendo, encontrava-se bem e cheio de alegria.
A pedido de Kurfürst, Boehme foi convidado a tomar parte num debate entre alguns dos melhores teólogos daquele tempo, incluindo dois doutores em matemática. Boehme aceitou e surpreendeu seus oponentes pela profundeza de suas ideias e pelo seu extraordinário conhecimento das coisas naturais e divinas; quando Kurfürst pediu um parecer sobre o caso, os teólogos pediram mais um tempo, a fim de melhor investigarem as questões que Boehme lhes haviam apresentado, e que parecia transcender os limites que julgavam capazes de alcançar. Um destes teólogos, Gerhard, dizia que não aceitaria o mundo inteiro, caso fosse oferecido a ele como uma tribo, para condenar tal homem; o outro Dr. Meissner, afirmou ser da mesma opinião, e que não tinha o direito de condenar aquilo que superava a sua compreensão; vemos assim, que nem todos os teólogos eram como Gregorius Richter, mas que tanto no clero como em outros segmentos, existem homens sábios e tolos. Tais teólogos,
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possuidores de uma mente nobre e livre da intolerância, mais tarde foram reconhecidos entre os admiradores e amigos de Jacob Boehme e se tratavam com muito respeito.
Logo após ter escrito sua última obra: "Ensaios sobre a Manifestação Divina" e de retornar à sua casa, foi atingido por uma febre. Seu corpo começou a inchar e ele anunciou a seus amigos que a morte estava perto, dizendo: "Em três dias vocês verão como Deus preparou o meu fim". Eles perguntaram então se Boehme estava pronto para morrer e ele respondeu: "Sim, de acordo com a vontade de Deus". Quando seus amigos expressaram a esperança de vê-lo melhor no dia seguinte, disse: "Que Deus permita que assim seja. Amém".
Isso aconteceu numa Sexta-feira; no Domingo, dia 20 de Novembro de 1624, antes da uma da manhã, Boehme chamou seu filho Tobias, ao lado da cama, e perguntou se ele não estava ouvindo uma belíssima música; pediu para que o filho abrisse a porta do quarto, para que a música celestial fosse mais bem ouvida. Mais tarde, perguntou pelas horas, e quando lhe disseram que o relógio havia dado duas horas, disse: "Ainda não é chegada a minha hora, ela chegará daqui a três horas". Depois de uma pausa, falou novamente, dizendo: "Tu, poderoso Heloim Sabaoth, salva-me de acordo com Tua vontade". Disse ainda: "Tu, Nosso Senhor Jesus Cristo crucificado, tenha misericórdia de mim e leve-me para o Teu Reino". Então, deu algumas instruções à sua esposa com relação a seus livros e outros assuntos temporais, dizendo ainda que ela não sobreviveria por muito tempo (o que de fato ocorreu) e, despedindo-se de seus filhos, disse: "Agora devo entrar no Paraíso". Pediu então ao filho mais velho, cujos olhos de amor parecia impedir que Boehme rompesse os laços do corpo, para virá-lo e dando um profundo suspiro, sua alma entregou o corpo à terra à qual pertencia, e entrou naquele estado elevado que não é dado a ninguém conhecer excepto àqueles que já o experimentaram.
O inimigo de Jacob Boehme, o intolerante vigário geral, Gregorius Richter, negou um enterro decente ao corpo do filósofo, e como o Promotor de Goerlitz, temendo mais uma vez ao vigário, não sabia o que fazer, decidiu-se levar o corpo para ser enterrado na propriedade de um amigo, no campo; houve muita confusão e a cerimónia fora perturbada pela população cujo preconceito fora inflamado pelo clero; mas o Conde Católico Hannibal von Drohna chegou a tempo, e ordenou que o corpo fosse enterrado de forma solene, e na presença de dois membros do Conselho municipal. Assim foi feito, mas o vigário fingindo estar doente, tomou remédios para não ser obrigado a realizar o sermão funeral; o clérigo que realizou o sermão em seu lugar, embora tivesse dado a absolvição e o sacramento à Boehme, pouco antes de sua morte, começou seu discurso expressando seu desgosto ao ser obrigado a fazê-lo por ordem do Conselheiro.
Alguns amigos de Boehme, da Silésia, enviaram uma cruz a ser colocada em seu túmulo, mas esta foi logo destruída por algum intolerante, que pensa agradar à Deus insultando a memória de um homem odiado por sacerdotes, mas que muito fez para trazer à humanidade a um verdadeiro conhecimento de Deus, o que qualquer sacerdote jamais fez nem na antigüidade nem na modernidade. Esta cruz era singelamente revestida de símbolos esotéricos. No topo havia uma cruz flamejante, com a seguinte inscrição hebraica: h w c h y, e doze raios dourados. Abaixo, havia as iniciais de seu lema favorito e a figura de uma criança dormindo e repousando sobre uma caveira, que significava a regeneração através da morte mística. Seguia-se a
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seguinte inscrição: "Repousa aqui o corpo de Jacob Boehme, nascido de Deus, morto no h w c h y, e selado pelo Espírito Santo". Do lado direito da inscrição havia a representação de uma águia negra sobre uma montanha, pisando sobre uma enorme cobra caracol, enquanto segurava com sua garra direita a folha de uma palmeira e em seu bico um ramo de lírios. Nesta figura estava escrito Vidi. Do lado esquerdo havia a representação de um leão, com uma cruz e uma coroa dourada. Com a pata direita levantada, o leão encontrava-se sobre uma pedra cúbica; a pata esquerda encontrava-se sobre um globo; mas em sua pata direita havia uma espada flamejante, e na outra um coração em chamas com a seguinte inscrição: Vici. Abaixo dessa inscrição havia uma outra figura, de forma oval, representando um cordeiro, com uma mitra e apetrechos de sacerdote, perto de uma palmeira, do lado de uma fonte corrente, num campo coberto de várias flores. Embaixo encontrava-se a inscrição Veni. O significado destas três palavras é: "In mundum Veni; Satanam descendere Vidi; Infernum Vici. Vivite magnanimi". Finalmente, sobre a parte inferior da cruz estavam inscritas as últimas palavras ditas por Boehme: "Agora devo entrar no Paraíso".
Boehme era pequeno quanto à estatura; tinha uma barba curta e fina; voz frágil e olhos acinzentados. Não possuía força física, no entanto, não se sabe ter tido outra doença além daquela que provocou sua morte. Mas, se era pequeno de corpo, era um gigante na inteligência e possuía um espírito poderoso. Suas mãos não faziam mais do que escrever e fabricar sapatos, mas o poder de Deus tendo se manifestado naquele aparente organismo insignificante e compondo os elementos e os princípios espirituais que representavam o homem Jacob Boehme neste globo terrestre, era suficientemente forte para espargir as mais petrificadas e gigantescas superstições existentes em seu século e nos séculos subseqüentes. Seu "Espírito" ainda luta contra os poderes das trevas, e a Luz que se acendeu na alma do pobre e pequeno Jacob Boehme continua iluminando o mundo, sendo cada vez maior, dia após dia, na proporção em que a humanidade torna-se capaz de aceitá-la, recebe-la e compreender suas idéias. Seu espírito, ou mais precisamente, o Espírito da Verdade manifestado através das obras de Jacob Boehme, está pouco a pouco revivendo a velha e ressecada teologia, matando o clericalismo e a intolerância, a superstição e a ignorância, os monstros gigantes que tem devastado o mundo há muito tempo, fazendo com que mais vítimas sejam sacrificadas do que mortas pelas mãos do deus da guerra, da peste e das drogas. A parte pensante da humanidade está começando a ver que há uma vasta diferença entre o verdadeiro espírito da religião Cristã e a forma externa em que é apresentado para a mente vulgar. Mesmo a melhor classe de clérigos, ou seja, aquela que não está totalmente absorvida pelas opiniões dogmáticas, enterradas em suas mentes, em suas escolas, mas que ousa buscar o auto conhecimento em Deus, sabe que se apegar as formas externas da religião, impede que a mente penetre em suas profundezas e alcance o espírito que produz estas formas e que é um e o mesmo em todas as grandes religiões; pois a verdade é universal, externa, e única; são os eruditos que tomam um múltiplo aspecto da verdade, e se referem à ela com múltiplos óculos coloridos.
Quanto a aplicação prática desta doutrina, Jacob Boehme diz: "Se permitirmos que nossa mente se preocupe com desejos terrestres, nossa mente será capturada por eles; mas se espiritualmente, nos colocamos acima do mundo dos desejos terrestres e das sensações, o mundo de luz irá capturar a nossa vontade, o mundo terrestre irá perder seu poder de atrair a nossa consciência, entraremos então no divino estado de Deus. O reino da matéria e das trevas é o reino da angústia, da contenção e do sofrimento; o reino do Espírito é o reino da luz, da alegria, da paz e da felicidade. Não há ser humano que não desejaria estar imerso nos prazeres materiais, se fosse capaz de
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compreender e perceber as alegrias do estado espiritual. Mas se o fogo da alma não é iluminado pela luz divina, a vontade da alma não pode entrar nesse estado, mas permanece nas trevas. A razão superficial acredita não haver faculdade de ver, exceto pelos olhos externos, e que se esses órgãos forem extirpados, haverá o fim da visão. É um infortúnio se a alma só pode ver através do espelho externo do olho. O que verá a alma se este espelho for quebrado? Ela estará nas trevas e só perceberá os lúgubres lampejos acesos por sua própria angústia e desespero. Enquanto a alma estiver conectada com o corpo, ela pode manter a luz divina em suas modificações, como manifestada através de uma ação do sol terrestre, e o sol é a fonte de todas as suas alegrias terrestres. Assim, o sol terrestre torna-se seu Deus, ela troca o efeito pela causa; ela é afastada da fonte da luz eterna e real, mergulhando nas trevas. Mas se a luz eterna e divina é recebida na alma, ela acende um fogo ali, que ilumina toda a substância da alma, de modo que esta torna-se luminosa, um espelho, um olho onde a luz de Deus é refletida. Que cada homem examine a si mesmo, e veja qual dos três mundos é seu mestre, o mundo de luz, o mundo das ilusões ou o mundo das trevas. Que ele procure sua própria alma, para ver se os quatro elementos do mal, a ambição, a raiva, a inveja e a avareza, ali governam, ou se a caridade universal, a benevolência, a bondade, a humildade e a boa vontade prevalecem, e não os deixam enfraquecer nessa batalha com seus elementos inferiores, a fim de que o Espírito de Deus possa ser vitorioso nele. Aquele que conscientemente carrega a imagem divina de Deus, não irá morrer por ocasião da morte do corpo, nem irá perder nenhum dos atributos que sua alma conquistou durante sua vida no corpo físico. Tanto o mundo do bem, como o mundo do mal, estão contidos no mundo do homem. Aquilo que fazemos de nós mesmos, é o que seremos no futuro; o que quer que despertarmos em nós viverá em nós; na direção em que nos lançarmos, ali deveremos receber nosso guia".
Jacob Boehme possuía notáveis poderes ocultos. Ele falava várias línguas, embora ninguém saiba onde as tenha adquirido, provavelmente numa vida anterior. Conhecia também a linguagem da natureza, e podia chamar as plantas e animais por seu nome próprio. Foi dotado de faculdades psíquicas, que o permitia ver "psicometricamente" o passado e "clarividentemente" o futuro. Muito se falou sobre esses poderes, como por exemplo: Certa vez, um devasso homem da nobreza agrediu à Boehme, chamando-o de falso profeta, desafiando-o a contar qualquer coisa que não tivesse aprendido da forma comum. Boehme pediu para ser deixado em paz; mas como o tal homem continuou com suas ofensivas, Boehme lhe falou sobre sua própria história passada, mencionando várias coisas vis feitas por ele secretamente. Previu ainda que logo chegaria seu fim. O homem ficou furioso, e tendo admitido que era tudo verdade, pegou seu cavalo e sumiu. Na manhã seguinte foi encontrado morto na estrada, tendo sido lançado pelo seu cavalo e quebrado o pescoço.
O lema favorito de Boehme era: "Nossa salvação está na vida de Jesus Cristo em nós". Isso é, por si só, suficiente para mostrar o verdadeiro carácter da Cristandade de Boehme, que não buscava a salvação em uma pessoa histórica e morta, mas do Jesus vivo, vivificado pelo Cristo; em outros termos, tornar-se auto consciente através da mente mais elevada ou Manas, na luz do Atma-Buddhi (a alma espiritual).
Quando lhe pediam um autógrafo, costumava escrever o seguinte:
"Aquele para quem o tempo é o mesmo que a eternidade,
e a eternidade o mesmo que o tempo,
está livre de qualquer contenção".
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Um ditado similar diz:
"Aquele para quem a dor é o mesmo que alegria,
e a alegria o mesmo que a dor,
deve agradecer a Deus a sua serenidade".
Entre os mais proeminentes seguidores e sucessores de Jacob Boehme, encontram-se vários célebres teólogos e filósofos, tais como Dr. Balthasar Walther, Abraham Frankenberg, Friedrich Krause, e até mesmo o filho de seu maior inimigo, Richter de Goerlitz, que publicou oito livros contendo extractos das obras de Boehme.
As obras de Boehme foram traduzidas para várias línguas e atraiu a atenção de Carlos I, da Inglaterra, que após ler "Respostas a Quarenta Questões", exclamou: "Deus seja louvado por ainda existirem homens capazes de dar um testemunho vivo de Deus e de Sua Palavra, através de experiências próprias". Johannes Sparrow, entre 1646 à 1662 traduziu as obras de Boehme para o Inglês e Edward Taylor foi responsável por outra tradução durante o reinado de James II. Uma terceira tradução foi publicada em 1755 por Willian Law; vários autores (incluindo o grande Newton), muito extraíram das obras de Boehme. Seus mais proeminentes discípulos, os mais capazes de alcançar suas idéias parece ter sido Thomas Bromley (1691) e Jane Leade (morta em 1703), fundadora da Sociedade dos Philadelphos (incluindo sob este nome todos aqueles que em certo estágio de desenvolvimento encontraram tal sociedade).
Henry Moore, Doutor em Cambridge, foi chamado para examinar as obras de Jacob Boehme, reportando-se contra elas. Ele as examinou, mas seu relatório foi diferente do que se esperava; pois mesmo se ele, por conta de suas ideias teológicas incrustadas, não era totalmente capaz de compreender as ideias de Boehme, confundindo-se de várias formas, ele se declarou a seu favor, dizendo que aquele que desprezasse Boehme, não passava de um ignorante e cego mental; acrescentou que, sem dúvida, Boehme teria sido espiritualmente despertado, a fim de corrigir aqueles falsos Cristãos que acreditavam meramente num Cristo externo, sem questionar se tinham ou não o Cristo em si.
Para a informação daqueles que acreditam que o presente pode tirar uma lição com a experiência do passado, devemos mencionar o nome de Johann George Gichtel, um homem piedoso, e um dos grandes discípulos de Boehme, um homem de grande visão e poder. Gichtel era um profundo pensador, de vida irrepreensível. Em 1682 ele republicou as obras de Boehme, adicionando a elas várias e valiosas gravuras, com respectivas explanações, mostrando grande profundidade de pensamento e conhecimento espiritual. Ao expor as faltas do clero, fez dele seu inimigo. Gichtel queria reformar o clero a força. Foi preso várias vezes, sendo até exposto publicamente ao ridículo em consequência de sua sinceridade. Ele fundou uma sociedade chamada de "Irmãos Angélicos", onde cada membro teria realmente renunciado ao mundo e entrado num estado de perfeição Angélica. Esses "Irmãos Angélicos" buscavam se livrar de qualquer imperfeição humana e não deveriam ser perturbados com preocupações terrestres. Não se casavam e nem realizavam qualquer trabalho manual; mas viver em contínua contemplação, oração, penetrando o centro do bem, a fim de eliminar todo mal; desta forma, a cólera de Deus poderia ser extinta das almas de todos os homens, sendo que o amor e a harmonia prevaleceriam em todo
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lugar. Eram favoráveis a depor o clero e colocar em seu lugar verdadeiros sacerdotes, segundo a ordem de Melkisedec, tomando para si o Karma de todos os homens e o pecado do mundo para expiação e redenção. Assim, esses homens bem intencionados esqueceram que a organização de uma irmandade angelical requer, acima de tudo, anjos que constituam seus membros. Tais anjos não são tão fáceis de encontrar, e mesmo que fosse, não necessitariam de organização externa. No entanto, a sociedade de Gichtel embora não fosse nem angélica, nem divina, é conhecida por ter praticado o bem. Henke, um historiador da igreja, escreveu que esta foi bastante tolerante, nunca condenando ninguém por conta destas crenças e opiniões, e que eles nunca fizeram alarde, mas em silêncio realizaram muitas e boas obras.
Os seguidores de Jacob Boehme nem sempre tiveram paz. Haverá intolerância teológica e de outros tipos enquanto houver ignorância no mundo. Tais pessoas, incapazes de compreender o espírito dos ensinamentos de Boehme, imaginaram que eles contivessem heresias e em 1689, Quirus Kuhlmann, um seguidor de Boehme, foi queimado vivo na estaca em Moscou, por ter expressado livremente suas opiniões com relação a iniquidade do clero daqueles tempos.
Todos os argumentos usados pelos inimigos de Boehme, nunca passaram do uso de nomes de mau gosto como: tolo, ateísta, porco, remendador de sapatos, hipócrita e doente! Além de frases do tipo: "O secto de Boehme é verdadeiramente demoníaco, o mais vil excremento do demónio; tem o pai da mentira como origem; o demónio tem a possessão de Boehme, e fala através de sua boca". (Johann Trick)
"Não desejamos subir as escadas de sonhos criada por Boehme. Fazê-lo seria tentar a Deus e colocarmo-nos em perdição". (Delitsch)
"As obras de Jacob Boehme contém tantas blasfémias quanto linhas. Elas contêm um terrível odor de cola e graxa de sapateiro". (Richter)
"O sapateiro é o anti-Cristo". (Richter)
"Perguntamos quem é digno de crença? A palavra de Cristo ou o preconceituoso sapateiro com a sua sujeira?" (Richter)
"O Espírito Santo ungiu o Cristo com óleo, mas o sapateiro vilão foi revestido de sujeira, pelo demónio". (Richter)
"O Cristo falou sobre coisas importantes; mas o sapateiro fala sobre coisas vis". (Richter)
"O Cristo pregou publicamente; mas o sapateiro se esconde". (Richter)
"O Cristo costumava beber bom vinho, mas sapateiros bebem whisky". (Rev. Gregorius Richter)
Isso basta para exemplificar os argumentos teológicos daqueles tempos. Por mais ridículos que possam parecer agora, impunham uma face muita séria a Jacob Boehme e a seus sucessores. Hobius, de Hamburg, um seguidor de Jacob Boehme, teve que deixar a cidade por medo de ser assassinado pelo povoado, que teve sua fúria exaltada pelo intolerante reverendo J. Frederic Mayer; e Abraham Hinkelman, pelo mesmo motivo morreu na ruína, enquanto J. Winkler, um teólogo, que se recusou a
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demonstrar qualquer desprezo por Jacob Boehme, foi salvo de seus perseguidores através da proteção oferecida a ele pelo rei.
Por outro lado, houve muitos dentre os mais iluminados teólogos, que se posicionaram em defesa de Jacob Boehme e de suas doutrinas: John Winkler, John Mathaei, Frederick Brenkling, Spencer e especialmente Gottfried Arnold, autor de uma história sobre igrejas e heresias. O sábio encontra a sabedoria em todas as coisas, até mesmo na conversa de uma criança; mas o tolo vê a sua própria imagem em todo lugar; o grande historiador Mozhof (1688) vê em Jacob Boehme um santo e um sábio; enquanto F.T. Adelung, que escreveu um livro sobre a tolice humana, denunciou tanto Jacob Boehme como Theophrastus Paracelsus como tolos. Os tão chamados "Racionalistas", e a grande massa de teólogos, combinados entre si de lutar contra aquilo que não eram capazes de compreender, enquanto Johann Salomo Samler, um pensador livre capaz de penetrar o espírito de Boehme, chamou sua obra de "uma fonte de alegria e de conhecimento espiritual, da qual todos podem beber sem ter a ordem de sua vida externa perturbada por isso".
Entre aqueles que preeminentemente foram capazes de alcançar as idéias de Jacob Boehme, mencionaremos apenas o grande teólogo Frederic Christop Oetinger, Pastor Oberlin e Louis Claude de St. Martin, o "Filósofo Desconhecido", que traduziu algumas de suas obras para o Francês. Muitas outras pessoas, bastante conhecidas na história, penetraram, uns mais outros menos, a fonte da verdade, tais como Henry Jung Stilling, Friederich von Hardenberg, Friederich von Schlegel, Novalis, Heinrich Jacobi, Schelling, Goethe, Franz Baader, Hegel e muitos outros que poderiam ser mencionados. O valor da Verdade não pode depender da recomendação ou do certificado de nenhuma pessoa, por maior autoridade que ela possa ter sido; a Verdade está além de qualquer exaltação. O motivo pelo qual o homem tem tanta dificuldade em ver a Verdade é por que ela é tão simples, que até mesmo uma criança pode contê-la; mas as mentes dos sábios deste mundo são complicadas, de modo que buscam a complexidade na Verdade. Aqueles que querem penetrar o espírito das doutrinas de Jacob Boehme devem se livrar de seus próprios preconceitos, abrindo seus olhos para a luz. Os que são capazes de ver, verão; para aqueles cujos olhos estão fechados, os escritos de Jacob Boehme serão um livro selado, sendo aconselhável que aprendam primeiro a lição ensinada pela vida terrestre antes de tentar julgar os mistérios da vida, no Espírito de Deus.
Da fonte da vida interior no homem surge aquele poder misterioso de ver e sentir a Verdade chamada de "intuição". É o poder de perceber imediatamente através do toque e da visão interior das coisas que pertencem ao espírito. Não se trata de compreensão e nem faz sentido falar de "confiabilidade" ou de "falha" da intuição; trata-se de percepção espiritual e, como na vida exterior somos capazes de ver algo, de senti-la através do tacto, antes de termos qualquer conhecimento de suas qualidades externas, do mesmo modo, na contemplação das coisas espirituais devemos ser capazes de perceber interiormente o objecto de nossa investigação antes de podermos entender o que ele é.
A obra de Jacob Boehme está de perfeito acordo com as afirmações encontradas na Bíblia Cristã; esta circunstância se mostrará um obstáculo para aqueles que não compreendem o sentido interno do conteúdo Bíblico, e um impedimento para que a dê atenção. A Bíblia, que, no sentido externo, fora formalmente acreditada e aceita pelo piedoso e pelo ignorante é agora universalmente desacreditada e ridicularizada pela
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"iluminada" porção da humanidade racionalista; naturalmente, a porção racionalista da humanidade não está suficientemente iluminada para ver o delicioso fruto sem a indigesta casca; eles não sabem que por trás destes contos, cheios de absurdos, oculta-se mais sabedoria do que em todos os livros de filosofia do mundo. Eles nada sabem sobre a vida interior, a Vida-Alma deste mundo; aqueles personagens, apresentados na Bíblia como dramáticos atores, representam poderes reais e conscientes, que podem, ou não, ser objectivados e representados em formas terrestres, no plano terrestre. Se, partirmos do ponto de vista pseudocientífico, que se refere ao mundo como sendo feito de um aglomerado de entidades individuais e auto existentes, olharemos para o mundo e especialmente para o nosso sistema solar, como uma unidade, indivisível em sua natureza essencial, mas manifestando-se numa multiplicidade de aparências e formas de vida; a história da Bíblia deixará de ser uma história de pessoas que viverem em tempos antigos, cuja vida e aventuras não tem nenhum interesse sério para nós, deste tempo; a história de evolução contida na Bíblia será compreendida como a história de evolução do Homem; exemplo: Adão, o rei da terra, cujo corpo é tão grande quanto nosso sistema solar; a história do homem universal, onde todos nós existimos; que se tornou material e degradado, mas que foi novamente redimido e espiritualizado pelo despertar em si da vida e luz imortal de Cristo.
Quando ou em que ocasião ocorreu a descida do Logos, é uma questão que deve ser deixada para os teólogos e historiadores; para mim basta saber que de fato existe um elemento divino na humanidade, através do qual ela pode ser redimida do materialismo e da ignorância, vindo a conceber novamente seu estado divino original. Além do mais, cada homem individual constitui um pequeno mundo onde está contido todos os poderes, princípios e essências que se existem no grande mundo, o sistema solar em que vivemos. Em cada um desses pequenos mundos a grande obra da redenção descrita na Bíblia como tendo ocorrido no grande mundo, continua acontecendo. O Espírito divino desce, para sempre, nas profundezas da matéria de nosso ser corpóreo, e, pelo poder da luz e do amor de Cristo na alma, conquista o fogo lúgubre da vontade colérica com o objectivo de restabelecer no homem a imagem divina de Deus. Para sempre, o Cristo nasce entre os elementos animais na constituição do homem, ensinando ali os poderes inteligentes; crucificado na cruz, no centro dos quatro elementos e ressurgido naqueles que não resistem ao seu próprio processo de regeneração, através do qual podem manter a vida em Cristo. Trata-se de um processo que se repete eternamente; mas, de acordo com o nosso mundo, isso teve início num tempo, como há um início temporal em cada ser individual sobre a terra; parece evidente, que se Adão nunca houvesse caído em pecado, ou seja, se a consciência universal, que constitui o fundamento de nosso sistema solar nunca tivesse mergulhado num estado material, não haveria a necessidade de redimi-lo, despertando em si uma consciência mais elevada; tampouco se poderia supor que o mundo está perfeito agora, e que sempre foi e permanece sendo perfeito, porque vemos que não é perfeito, e se fosse, a obra de evolução não teria sua utilidade e chegaria a um fim.
Esta obra de evolução e redenção está em processo contínuo, em todo lugar. Para baixo brilha a luz do sol e para cima surgem as fontes que jorram do ventre da terra. Assim, a luz do Espírito vem do sol da sabedoria divina, a sagrada Trindade da Vontade e da Inteligência e suas manifestações; e das profundezas do coração humano sobe a luz do amor, superando os argumentos do intelecto que tem sido enganado pelas aparências externas. A semente é colocada na terra, não para dela desfrutar e ali
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encontrar seu o seu propósito, mas para morrer gradualmente e ser transformada enquanto vive; morrer como semente, desenvolver-se como planta, cujo corpo surge da terra escura na luz e no ar, e cuja forma não carrega nenhum traço da forma original da semente; a semente não foi colocada na terra para morrer e para apodrecer antes de se tornar uma planta. Assim, a regeneração espiritual do homem deve ser efetivada agora, enquanto ele vive no corpo, e não depois que o corpo, necessário para que tal transformação ocorra, tenha morrido e seja devorado pelos vermes e destruído pelo fogo.
Quando a semente deixa de ser semente, torna-se uma planta. Quando o homem, intermediário entre um animal intelectual e um deus, deixa de ser um animal, ele se torna um deus. Isso ocorre quando o Deus universal, o Cristo, começa a viver nele. Então as ilusões acabam, e a verdade interior começa a ser revelada. Não em livros, não em opiniões, não na forma vaga das especulações metafísicas, mas na Verdade viva, onde está a Luz a ser encontrada.
É preciso estar preparado para estudar as doutrinas de Jacob Boehme. Elas cominam num único ponto que o homem deveria compreender como sendo a vontade de Deus. Surge então a questão: "O que é a vontade de Deus?" A resposta de Jacob Boehme é: "Nós mesmos somos a vontade de Deus, por bem ou por mal. O que quer que seja manifestado em nós, é o que somos, seja no inferno, seja no céu." A vida do homem é uma forma de vontade divina, e fazer a vontade de Deus significa, portanto, tornar-se divino e semelhante à Deus, tentando cumprir os mais altos ideais, pensamentos, palavras e feitos de cada um. "Deus deve tornar-se homem, e o homem deve tornar-se Deus. O céu deve tornar-se um com a terra, e a terra deve tornar-se um céu, a fim de que sua vontade se torne a vontade do céu." (Signatura, x.48). Usando outras palavras, podemos dizer: "A vontade universal, em sua ação no homem, deve tornar-se divina, a fim de que o homem tenha a consciência de estar em possessão dos poderes divinos. A mente terrestre do homem deve ter despertada em si a luz divina do espírito, a fim de que um céu possa ser criado na mente". As doutrinas de Jacob Boehme, portanto, não têm a intenção de nos ensinar aquilo que deveríamos saber ou o que deveríamos fazer, mas pretende nos auxiliar a cumprir algo de maior importância, o que devemos ser.
Ele mesmo diz, na introdução de um de seus livros:
"Caro leitor que ama à Deus! Se é de tua séria e honesta vontade e desejo devotar a ti mesmo ao que é divino e eterno, a leitura deste livro será muito útil; mas se não estiveres completamente determinado a entrar no caminho da santidade, é melhor que deixes em paz os nomes de Deus, com os quais Sua santidade suprema é invocada, porque a cólera de Deus pode ser acesa em tua alma. Esse livro é escrito somente para aqueles que desejam ser santificados e unidos com o Poder Supremo, de onde originaram-se. Tais pessoas irão compreender o verdadeiro sentido das palavras aqui contidas, e irão também reconhecer a fonte de onde vieram tais pensamentos".
Um dos mais iluminados críticos de Jacob Boehme diz o seguinte, com relação a seu livro sobre os mistérios divinos:
"Este livro é um tesouro, onde toda a sabedoria foi ocultada dos olhos dos profanos, mas para os filhos da luz ela está sempre aberta. Ninguém irá compreendê-la claramente, a menos que tenha a chave necessária para esse fim, essa chave é o Espírito Santo. Aquele que possuir esta chave será capaz de abrir a porta, entrar e ver 18
os mistérios da divindade, a mágica divina, a cabala angélica e a filosofia natural. Tal chave abre a porta da divindade e como um raio de luz, ilumina as trevas das condições humanas; pois seu espírito imperecível está contido de todas as coisas. Só o Espírito pode ensinar a alma do homem a profundeza e a verdade que se originarem com este livro, para a maior glória da divindade na natureza e no homem".
Ele diz ainda:
"O espírito do homem está enraizado em Deus; a alma do homem, no mundo angélico. O espírito é divino, a alma angélica. O corpo do homem está enraizado no plano material; ele é de natureza terrestre. O corpo puro é um Sal; a alma um Fogo; o espírito uma Luz. O espírito e a alma sempre estiveram eternamente em Deus e foram soprados por Deus, num corpo puro. Esse corpo puro é um tesouro precioso escondido na rocha. Ele está contido na matéria e está condenado a perecer; mas ele próprio não é nem mortal, nem material. Trata-se do corpo imortal falado por São Paulo. Essas coisas são misteriosas, seladas pelo selo do Espírito, e aquele que desejar conhece-las deve possuir o Espírito de Deus. É esse Espírito que ilumina aquelas mentes que são Suas, e onde quer que se encontrem, as águias – almas e espíritos – irão coleta-las. Nenhum homem animal, vivendo segundo suas atrações sensuais e raciocínio animal, irá compreender, pois isso está acima do alcance dos sentidos, e acima do alcance do Intelecto semi-animal; pertence à montanha santa de Deus, e o toque animal que tocar aquela montanha devem morrer. Mesmo as almas santificadas devem ficar descalças ao subirem na montanha, deixando para trás tudo aquilo que estiver impregnado em si como uma criatura. Ela deve esquecer sua personalidade, e não procurar saber se está no corpo ou fora dele. Deus sabe. Essas coisas são sagradas. Foram escritas para as crianças, os animais nada temos a dizer."
Que o leitor ore, não com aboca, não com suas próprias palavras, mas com seu espírito, ou seja, abra seu coração à influência do poder de Deus, e pelo poder da Vontade Divina surja para aquele reino universal da Luz, do qual Jacob Boehme recebeu suas iluminações. É o reino do Verbo vivo, que se encontrava no princípio; pelo seu poder, o mundo foi criado; o Cristo que continuamente suspira o consolo para a alma desesperada e moribunda; o coração e o centro de Deus, cujo sol material, que preenche nosso mundo terrestre de luz e vida é meramente um símbolo, uma representação exterior. Que possamos ver o mundo interior repleto de luz celeste e vivificante, incomparavelmente superior que aquela do mundo físico, e nesse mundo encontraremos Deus, o Cristo e o santo Espírito da Verdade revelada, junto com todos os anjos e mistérios, verdadeira e satisfatoriamente além da possibilidade de ser contestada; pois então, não teremos a necessidade de ensinar com meras letras ou palavras, mas pela verdade em si, e aprender o que é, e não o que parece ser para o outro, porque nós mesmos seremos um com a Verdade, e a conheceremos através do conhecimento do eu.
No ano de 1705 o santificado Gichtel escreveu: "Quem quer que seja, em nosso tempo, que deseje manifestar algo fundamental e imperecível, deve emprestá-lo de Boehme. Sua obra é um Dom de Deus, e é justamente por isso que não é qualquer tipo de razão que pode apreende-la; portanto, não se deve ficar satisfeito com uma mera leitura e especulação racional, mas rogue a Deus para que te dê Seu Espírito Santo, para que te conduza à Verdade".
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Essas palavras proféticas, citadas no excelente ensaio de A. J. Penny, sobre o caminho para estudar a obra de Jacob Boehme, foram plenamente confirmadas pelos eventos que se sucederam; pois todo grande filósofo que veio a público desde aquele tempo parecem ter recebido sua inspiração através da obra de Boehme. Até mesmo o grande Arthur Schopenhauer, um dos mais admiráveis filósofos modernos, cuja obra foi admirada por muitos daqueles que condenariam Boehme, sem nunca o ter estudado, era um seguidor de Boehme, sua obra é fundamentalmente uma exposição das doutrinas de Boehme, através de seu ponto de vista, que mal interpretou Boehme em vários pontos. Schopenhauer comenta também sobre a obra de Schelling: "Não passa de uma remodelação do "Mysterium Magnum" de Boehme, onde quase todas as frases do livro de Hegel estão representadas. Mas por que no livro de Hegel as mesmas figuras e formas me parecem insuportavelmente ridículas, sendo que na obra de Boehme me enchem de admiração e reverência? É porque na obra de Boehme o reconhecimento da verdade eterna fala a cada página, enquanto que Schelling tira dele o que é capaz de alcançar. Ele usa a mesma figura de linguagem, mas evidentemente mistura a casca com o fruto, ou talvez não saiba separar uma da outra". (Handschriften, Nachlass p. 261).
Seria tedioso reproduzir o que vários filósofos modernos, de várias partes do mundo, disseram sobre as obras de Boehme; a única forma de se ter uma correta concepção sobre ele, é penetrar o espírito e ver como ele viu. Iremos, portanto, como conclusão, citar as palavras de Louis-Claude de Saint-Martin: "Eu não sou jovem, beiro meus cinqüenta anos; no entanto, comecei a aprender alemão com o único objetivo de estudar incomparável autor".
... "Eu não sou digno de amarrar os laços do sapato deste homem maravilhoso, que considero a maior luz que já apareceu, sobre a terra, depois daquele que era a Luz propriamente dita"... "Eu vos aconselho a lançarem-se neste abismo de conhecimento das mais profundas de todas as verdades..." "Encontro em suas obras tal profundidade e exaltação de pensamento, e tão simples e delicioso alimento, que consideraria uma perda de tempo buscar tais coisas em outro lugar". (Cartas para Kirchberger).
Se algum dia compreendermos a obra de Jacob Boehme, ficaremos surpresos ao verificar que nem todos os amantes da verdade conhecem seus livros, e os consideraremos como o mais valioso e útil tesouro da literatura espiritual.
A DOUTRINA DE JACOB BOEHME
"Toda a nossa doutrina nada mais é do que uma instrução de como o homem pode criar um reino de luz dentro de si mesmo... Aquele em quem flui esta fonte de poderes divinos carrega consigo a imagem divina e a substancialidade celeste. Nele Jesus nasceu da Virgem, e ele não irá perecer na eternidade". (Six Points, VII 33).
CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO
"A Ciência não pode abolir a fé no Deus Providencial, sem idolatrar em Seu lugar o intelecto cego".
"A verdadeira fé ocorre quando o espírito da alma entra com sua vontade e deseja naquilo que não vê e não sente". (Four Complexions, 85)
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É evidente que se desejamos alcançar uma contemplação daquilo que é divino e eterno, não podemos nos recusar a acreditar na possibilidade de que algo divino e eterno existe, ou que possa se revelar na constituição do homem. Este princípio espiritual no homem é superior ao animal e ao homem racional; superior ao corpo material, e superior ao intelecto argumentativo; não há a necessidade de raciocinar ou adivinhar; percebe-se e se sabe. Sendo esse princípio superior ao intelecto, não pode ser concebido como intelectualidade, mas pode ser percebido pelo homem, caso ele se eleve do plano animal e intelectual a uma consciência de seu próprio espírito divino; ou, usando a linguagem de Boehme, se o homem manter seu conhecimento em Cristo. Os instintos animais no homem pertencem à sua natureza animal; suas faculdades intelectuais pertencem à sua natureza intelectual, mas aquilo que é divino pertence ao seu Deus, seu verdadeiro, real e permanente eu.
Especulações meramente teóricas com relação ao que pertence ao Espírito no homem é, portanto inteiramente inadequado para sua verdadeira compreensão, e não tem nada de sabedoria divina; isso só pode levar à formação de teorias e opiniões sobre o assunto, que podem ou não ser verdadeiras, mas que não constituem conhecimento real, enquanto que a verdadeira sabedoria é o resultado de experiência prática, não alcançada de outra forma senão quando se entra no estado divino. Em outras palavras, é o conhecimento pelo qual Deus no "homem" conhece a si próprio.
Certamente a conquista do estado divino não é resultado de vôos da fantasia, de sonhos piedosos ou de deixar a imaginação correr. Não há nada mais positivo, real e prático do que a consciência de ser um homem, e de se encontrar o seu centro de gravidade na dignidade que surge na verdadeira humanidade; em outras palavras, do conhecimento de ser um templo vivo, onde reside o poder de seu próprio ser imortal.
Cada estado de conhecimento tem o seu uso na esfera a que pertence e não à outra. Jacob Boehme afirma:
"Não digo que o homem não deva investigar as ciências naturais, e adquirir experiências relacionadas as coisas externas. Com certeza, esse estudo é útil, mas o raciocínio do homem, não deve ser a base de seu conhecimento. O homem não deve ter a sua conduta guiada meramente pela luz da razão exterior, mas deve sim, com todo seu raciocínio e todo o seu ser, curvar-se em profunda humildade diante de Deus". (Calmness, 1. 35).
Enquanto o homem não reconhece a existência de um princípio divino em seu próprio ser, será inútil filosofar e especular sobre os atributos da Divindade no universo; ele não pode conhecer o Espírito Santo enquanto o Espírito de Santidade não estiver ativo em si mesmo.
"O homem natural nada sabe sobre os mistérios do reino de Deus, porque ele está fora e não dentro do estado da divindade, sendo provado diariamente pela ação dos filósofos que brigam por causa dos atributos e da vontade de Deus; de fato, eles não conhecem a Deus, porque não ouvem a palavra de Deus dentro de suas próprias almas". (Cartas, XXXV. 5).
O homem externo julga segundo o raciocínio externo. O homem depende inteiramente de suas percepções externas, e não tem nem crença e nem confiança em nada, exceto no que vê com seus olhos carnais; ele não atenta para nada que seja superior a isso.
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"Quando a razão externa comanda as coisas deste mundo; como o infortúnio recai sobre o piedoso e o descrente, e como todas as coisas estão condenadas à morte e à destruição – se a razão acreditar que nada salvará o virtuoso do pesar e da dor, mas que tanto ele, como o fraco entra, dolorosamente, no vale da morte, então a razão do homem pensa que todas as coisas se devem ao puro acaso, e que não há Deus para cuidar daqueles que sofrem". (Contemplation, I,1).
Se não há prova da existência de um Deus benevolente, que possa ser encontrada no mundo fenomênico, não há também nenhum auto conhecimento divino a ser obtido pela leitura superficial da Santa Escritura, nem por um estudo externo da Bíblia, ou por conceber seu conteúdo, de um ponto de vista meramente histórico. Ouvir sermões também não adianta nada para o auto conhecimento, se aquele que prega e aquele que ouve não tem o Espírito Vivo da Verdade, dentro de si.
"Todos aqueles que desejam falar ou ensinar os mistérios divinos devem possuir o Espírito de Deus. O homem deve reconhecer em si a luz divina da verdade, e nessa luz as coisas que ele deseja apresentar como sendo verdade. Ele nunca deve estar sem esse auto conhecimento divino, e nem fazer com que a força de seus argumentos dependa meramente do raciocínio externo ou de interpretações literais da Bíblia". (Menschwerdung, I. I, 3).
"De que adianta ficar consultando a Bíblia, conhece-la de memória, mas não conhecer o Espírito que inspira os homens santos que escreveram aquele livro, nem a fonte da qual receberam tal conhecimento? Como posso esperar compreende-lo em verdade, se não possuo o mesmo espírito que eles?" (Tilk. II. 55).
As verdades espirituais estão acima e além do raciocínio intelectual, podendo, portanto, não serem intelectualmente explicáveis. Elas podem no máximo, serem representadas por alegorias e símbolos que induzam os homens a dar passagem aos pensamentos exaltados, adquirindo assim um estado elevado de percepção.
"Os filhos de Deus falam através do Espírito Santo. Portanto, suas palavras permanecem um mistério aos homens da terra; e mesmo que esses imaginem que as compreendem, eles só vêem o sentido externo". (Cartas, XI. 40).
"Todas as coisas recebidas por boato, sem a percepção pessoal, ainda permanecerá uma dúvida quanto a sua real verdade; mas aquilo que é visto pelo olho e compreendido pelo coração carrega consigo a convicção". (Three Principles, X. 26)
Nunca se deve esquecer que a filosofia especulativa e a teologia são coisas completamente diferentes, para não dizer coisas opostas, e aqueles que clamam por explicações intelectuais das verdades espirituais, que estão além do raciocínio intelectual, possuem uma concepção totalmente errônea do sentido do termo "Teosofia".
"A verdadeira compreensão deve vir da fonte interior e penetrar a mente do Verbo vivo de Deus, dentro da alma. A menos que isso ocorra, todo ensinamento sobre as coisas divinas é inútil e desprezível". (Cartas, XXXV. 7).
"Não pretendo afastar os homens do Verbo enquanto escrito e ensinado; mas meus escritos pretendem conduzi-los de uma mera crença histórica para uma fé viva, ao próprio Jesus Cristo (a Luz e a Verdade). Toda pregação e ensinamento é inútil se não passar de conversa, e se o pregador ou mestre não tiver o poder de Cristo, se não é o
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Cristo propriamente dito por meio do Verbo, que age dentro daqueles que ensinam e daqueles que ouvem". (Richter, 45).
Ao estudar um livro podemos, na melhor das hipóteses, imaginar o que o autor acreditava; mas tal ensinamento imaginário não é auto conhecimento. O conhecimento espiritual real só aparece com o despertar do espírito.
"Não estou coletando meus conhecimentos das letras e livros, mas do meu próprio ser; porque o céu e a terra, com todos os seus habitantes, e mais que tudo, o próprio Deus, está no homem". (Tilk. II. 297).
O homem essencial não é limitado pela forma física visível de seu corpo material; sua substância espiritual se estende tão longe quanto as estrelas. Seu verdadeiro ser é o Espírito de Deus, onde todos os mundos estão em existência.
"O espírito do homem não veio meramente das estrelas e dos elementos; ele traz oculta em si uma centelha da luz e do poder de Deus. Não é à toa que Moisés (Gênesis I) diz: "Deus criou o homem à Sua própria imagem. Para ser Sua própria imagem Ele o criou". (Aurora, Prefácio, 96).
O Espírito divino, uma vez despertado na consciência do homem, sabe todas as coisas através do conhecimento de seu próprio ser.
"A alma busca na Divindade e também nas profundezas da natureza; pois ela tem a sua fonte e a sua origem no todo do Ser divino". (Aurora, Prefácio, 98).
"Assim como o olho do homem busca as estrelas de onde teve sua origem primitiva, a alma penetra e vê no estado divino do ser, onde vive". (Aurora, Prefácio, 99).
"Ó, quão perto está Deus de todas as coisas. No entanto, nada pode compreendê-lo, a menos que esteja tranqüilo e entregue sua vontade própria à Ele. Se isso for realizado, então a vontade de Deus estará agindo através da instrumentalidade de todas as coisas, como o sol que age por todo o mundo". (Mystery, 45).
"Por que não podemos ver a Deus? Este mundo e o demônio (bem pervertido) na cólera de Deus nos impedem de ver com os olhos de Deus. Não há outro impedimento. Se alguém diz: ‘Não posso ver nada divino’, precisa compreender que a carne e o sangue e as artimanhas do demônio (desejos pervertidos) consistem um obstáculo e impedimento para ele. Se ele pretende penetrar a nova vida, caminhar sob a cruz de Cristo, é preciso ter certeza de ver o Pai, seu redentor, o Cristo e também o Espírito Santo". (Menschwerdung, II,7).
Lembrem-se, pretensos filósofos, que rejeitam à Deus e o que é divino: não pode haver sabedoria divina sem algo que seja divino; não há outra forma do homem se tornar divino senão através do poder da Divindade.
"Não há centelha de vida divina naquele que está sem Deus. Não se deve culpar à Deus por isso, mas a própria pessoa. Tais pessoas tem a si mesmas, e por vontade própria, entraram em tal estado, abafando a consciência elevada, enquanto que a jóia preciosa, embora desconhecida deles, continua oculta no centro. Deixe, portanto, que eles saiam novamente da ignorância intencional ou malignidade, por vontade própria, e entrem novamente na vontade de Deus". (Menschwerdung, 3, 5).
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Tudo isso prova que é inútil buscar a sabedoria divina, objetivando uma verdadeira realização da verdade eterna, nas coisas e observações exteriores, lendo livros, nas palavras dos sacerdotes, se não reconhecermos a verdade que existe dentro de nosso próprio ser. Toda dependência colocada em coisas externas, pessoas ou deuses fora de nosso próprio e verdadeiro ser, não passa de idolatria e engano, se não reconhecermos o Deus que existe dentro de nós mesmos.
"Deus", segundo Boehme, é "a vontade da sabedoria eterna". Se fortalecer em Deus é se fortalecer naquela vontade à qual se entrega o sábio. Esta é a verdadeira fé, da qual Boehme diz que: "não se trata apenas de um certo método de pensar, ou a crença em certas ocorrências históricas, mas no recebimento do espírito e poder de Cristo no ser". (Cartas, XLVI. 39).
"Essa luz e esse poder de Cristo surge em Seus filhos dentro da fundação interior e ilumina a totalidade de suas vidas. Dentro dessa fundação encontra-se o reino de Deus no homem" (Communion, V. 18).
Mas o que é que impede o homem de reconhecer à Deus dentro de seu próprio ser? O que é que obstrui a visão da luz da verdade, a audição da voz da Divindade? Jacob Boehme tem uma resposta: "Tua própria audição, vontade e visão te impede de ver e ouvir à Deus. Através do exercício de tua vontade própria tu te separas da vontade de Deus; pelo exercício de tua visão própria, tu vês apenas dentro de teus próprios desejos, enquanto que teu desejo obstrui a tua audição, fechando teus ouvidos com aquilo que pertence as coisas materiais e terrestres. Tudo isso te encobre, de modo que não podes ver o que está além de sua própria natureza humana e supersensual. Mas se ficares quieto, desistir de pensar e sentir com seu próprio ser pessoal, então a audição, a visão e a palavra eterna serão revelados a ti, e Deus irá ver e ouvir e perceber através de você". – (Supersensual Life, 1-5).
Alguém poderia perguntar: "Seria necessário então, para nós que queremos alcançar a sabedoria divina, não pensar, não sentir e não fazer nada?" Quem faz tal pergunta não percebe que, como há uma região abaixo de todo sentimento e pensamento, na qual o homem assemelha-se a um animal, se não a um cadáver, há também um outro estado, além de todo pensamento especulativo, um estado de ser divino. Não se trata de um estado em que o homem imagina ser divino, mas uma condição na qual a vontade do homem, despindo-se de tudo o que é terrestre, torna-se divina e absorvida na auto consciência da divindade.
"O único e verdadeiro caminho através do qual Deus pode ser percebido em Sua Palavra, Essência e Vontade, é quando o homem alcança um estado de unidade consigo mesmo, e quando – não só em sua imaginação, mas em sua vontade, possa deixar tudo o que é eu pessoal, ou o que pertence ao eu: dinheiro e bens, pai e mãe, irmão e irmã, esposa e filhos, corpo e vida, quando o seu próprio eu se transforma num nada. Ele deve entregar tudo e se tornar mais pobre que um pássaro no ar, que possui um ninho. O homem não deve ter um ninho para o seu coração neste mundo. Não que se deva fugir de casa, abandonar esposa, filhos ou parentes, cometer suicídio, ou jogar fora suas propriedades, a fim de não estar corporalmente presente; deve-se matar e anular a vontade própria, aquela que clama por todas essas coisas como sua possessão. O homem deve entregar tudo isso ao seu Criador, e dizer com todo consentimento de seu coração: ‘Senhor, tudo é seu’! Sou indigno de governar tudo isso, mas como Tu me colocastes ali, devo cumprir meu dever entregando minha
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vontade a Ti, de forma total e completa. Aja através de mim da forma que quiseres, a fim de que a Sua vontade seja feita em todas as coisas e em tudo que eu seja chamado a fazer para o benefício de meus irmãos, a quem sirvo segundo o teu mandamento. Aquele que penetra neste estado de resignação suprema entra em união divina com Cristo, a fim de ver ao Próprio Deus. Ele fala com Deus e Deus fala com ele, ele sabe qual é a Palavra", a. "Essência, e a Vontade de Deus". (Mysterium, XLI. 54-63).
"Siga meu conselho, deixe de buscar o conhecimento de Deus, através da sua vontade egoísta e de teu raciocínio; jogue fora tua razão imaginária, aquela que teu eu mortal pensa que possui, então tua vontade será a vontade de Deus. Se Ele encontrar a Sua vontade como sendo a sua vontade na Dele, então a Sua vontade irá se manifestar em sua vontade, como se fosse em Sua própria propriedade. Ele é Tudo, e o que quer que desejes saber no Tudo está Nele. Não há nada oculto diante Dele, e tu verás em Sua própria luz." (Forty Questions, I.36).
"Tudo o que se busca e se investiga sobre os mistérios divinos num espírito de egoísmo é inútil. A vontade própria não pode compreender nada de Deus, porque essa vontade não está em Deus, mas é externa à Ele. A vontade num estado de tranqüilidade divina, compreende o divino, porque é um instrumento do Espírito, e é o espírito em que a vontade é tranqüila que tem a faculdade de tal compreensão. Há muitas coisas, sem dúvida, que podem ser investigadas, aprendidas e compreendidas num espírito de egoísmo, mas a concepção assim formada pela mente não passa de uma aparência externa, e não há compreensão do fundamento essencial." (Signature 15,33)
Para expressar o que foi dito acima em outras palavras, podemos dizer que a vontade egoísta do homem, sendo limitada, não pode conceber a vontade universal de Deus; é preciso se livrar de seu egoísmo e limitações, para se tornar um no Espírito de Deus e compreender seu próprio ser. A vontade própria não pode conhecer nem ao menos uma parte de Deus, porque Deus é um e uma Unidade, e não pode ser concebido em partes.
"A vontade deve buscar ou desejar nada mais do que a misericórdia de Deus no Cristo; deve entrar continuamente no amor de Deus, e não permitir que nada a afaste deste objetivo. Se a razão externa triunfa e diz: ‘Eu tenho o verdadeiro conhecimento’ então a vontade deve fazer a razão carnal curvar-se à terra, fazendo com que entre num estado mais elevado de humildade, e com que repita sempre para si mesma as palavras: ‘És tola. Tu nada possuis senão a misericórdia de Deus’. Tente penetrar essa misericórdia e tornar-se um nada em si mesmo, e afaste-se de todo o seu próprio conhecimento e desejo egoísta, reconhecendo-os como algo inteiramente impotente. Então a vontade própria natural, irá entrar num estado de abandono, e o Espírito Santo de Deus irá tomar uma forma viva dentro de ti, inflamando a alma com suas chamas de amor divino. Assim, o conhecimento elevado e a ciência do Centro de todo ser irá surgir. O eu humano irá começar a perceber o Espírito de Deus, tremulamente e na alegria da humildade, e será capaz de ver o que está contido no tempo e na eternidade. Tudo está perto de uma alma nesse estado, pois a alma não é mais propriedade sua, mas um instrumento de Deus. Em tal estado de calmaria e humildade a alma deve permanecer, como uma fonte permanece em sua própria origem, ela deve, sem cessar, atrair e beber daquele poço, e nunca mais desejar deixar o caminho de Deus". (Calmness, 1, 24).
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Assim como o verme, que se arrasta no pó da terra, não pode se elevar acima das nuvens, como faz a águia, também o pensamento de vontade própria do homem, vagando no labirinto das opiniões conflitantes, não entra no reino da verdade eterna. Mas quando o homem atinge a liberdade, abandonando a vontade própria e os desejos egoístas – ou, em outras palavras, quando através do Cristo (eterna Luz e Verdade) se chegar a um estado de unicidade com Deus, o que torna sua alma semelhante à Deus e divina, ele então receberá em Cristo um conhecimento verdadeiro e essencial de Deus e da Natureza.
Tão logo o recém homem regenerado se manifeste, irá alcançar o conhecimento real. Assim como o homem externo vê o mundo externo, o homem regenerado vê o mundo divino onde ele habita". (Cartas, XXVII. 3).
Este mundo espiritual, onde os regenerados vivem conscientemente, não é um mundo imaginário ou alusivo, mas perfeitamente real; ele não tem nada em comum com as concepções vulgares de céu, que não passam de produtos da fantasia.
"É de se lamentar como os homens são guiados de forma tão cega por aqueles cegos, e que a verdade é impedida de se manifestar em sua glória e pureza por causa de nossas concepções das formas e figuras externas; pois quando o poder divino em todo o seu esplendor se torna manifesto e ativo no fundamento interior da alma, a ponto do homem desejar sinceramente abandonar os caminhos desprovidos de Deus e sacrificar todo o seu ser por Deus, então toda a Divindade trina estará presente na vida e na vontade da alma, e o céu, onde Deus reside, se abrirá para essa alma." (Mystery, LX. 43).
Esta é o único caminho para se obter o conhecimento de Deus, não há outro.
"O Cristo diz: O Filho do Homem não faz nada além do que vê o Pai fazendo. Se o Filho do Homem tornou-se o nosso corpo e Seu espírito o nosso próprio espírito, seria possível não conhecermos à Deus? Se vivemos no Cristo, o Espírito de Cristo verá através de nós e em nós aquilo que deseja, e aquilo que o Cristo deseja veremos e conheceremos Nele. O mundo dos anjos é mais simples e mais claramente compreensível para o homem regenerado do que o mundo terrestre. Ele também vê no céu, e observa a Deus e a eternidade". (Menschwerdung, II. 7,3).
"A nossa visão e o nosso conhecimento estão em Deus. Ele revela a todos neste mundo, segundo a Sua vontade, e na medida em que sabe ser útil para ele. Não estamos em possessão de nosso próprio ser. Nada sabemos sobre Deus. O Deus Propriamente dito é o nosso conhecimento e visão. Não somos nada, a fim de que Ele possa ser Tudo em nós. Devemos ser cegos, surdos e mudos, e não saber nada, não tomar conhecimento de vida que seja propriedade nossa, a fim de que Ele possa ser a nossa vida e a nossa alma, e a fim de que nossa obra possa ser a Sua". (Menschwerdung, II. 7,9).
Tendo em vista essa verdadeira luz, quão tolas parecem as práticas daqueles que pretendem obter o poder e a grandeza espiritual, através de esforços mentais e especulações, sem a luz de Deus. Sabe-se que a luz do sol não brilha sobre a terra porque nós desejamos, tampouco podemos atrair a luz do sol para nós. Tudo o que fazemos é deixar as trevas, ou subir ao topo de uma montanha que se ergue acima das nuvens. Do mesmo modo, a luz do sol da sabedoria divina não penetra a mente porque a mente deseja que ela a penetre; mas se nossas almas elevarem-se ao topo da
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montanha da verdadeira fé, cujo topo chega acima das nuvens do medo e da superstição, das especulações idólatras e das opiniões conflitantes, então a luz chegará a nós através de sua própria doce graça, e sem nenhum mérito ou esforço de nossa parte para atraí-la.
O baixo não pode produzir o alto; nada pode dar à luz a algo mais elevado do que aquilo que contém. Nem o homem animal ou racional pode criar Deus, mas o botão de lírio da divindade desabrocha-se no homem por seu próprio poder. O homem divino cria a si mesmo fora da vontade do homem. Ele é um deus, auto criado e auto existente; ele não fica maior nem menor; ele é o que é; tudo o que necessita são as condições necessárias para se revelar e essa condição é uma vontade pura e uma mente não perturbada por paixões e pensamentos idólatras, um coração repleto de tranqüilidade e paz.
De fato, poucas são as pessoas capazes de penetrar tal estado de humildade para que a verdade eterna e divina possa se manifestar em nelas, sem que sejam distorcidas por pensamentos e desejos egoístas. Todos os seres humanos possuem em si a capacidade de ver a imagem divina que ali existe;mas a verdade é tão simples e descomplicada que não é aceita por aqueles cujos caminhos são complicados, e que portanto, procuram a complexidade em todo lugar.
Jacob Boehme possuía uma natureza simples e descomplicada. Recebeu uma educação externa e pequena; ele não tinha a necessidade de desaprender erros gravados, nem de apagar concepções errôneas e preconceitos de sua mente. Levando uma vida pura, sua alma era como um espelho limpo, no qual ele podia perceber a imagem da Divindade refletida; sua mente era como uma página imaculada, onde a palavra da verdade foi plenamente escrita. No entanto, assim como qualquer outra pessoa em estado semelhante, teve que superar certas ilusões em sua mente, que surgem das observações externas, e do reflexo das idéias que geralmente prevalecem. Ele diz:
"Antes de saber o que agora sei profundamente, pensava que não havia outro céu verdadeiro do que aquele que, num círculo azul, encobre o mundo acima das estrelas; pensava que Deus tinha ali uma existência separada, e que governava este mundo através de seu Espírito santo. Mas depois de ter me deparado com vários e difíceis obstáculos ao seguir esta teoria, cai num estado de profunda melancolia e pesar ao observar a grande profundidade deste mundo, o sol e as estrelas, as nuvens, a chuva e a neve, e toda a criação. Comparei tudo isso com a pequena mancha chamada ‘homem’, e quão insignificante ele é diante de Deus, se comparado com a grande obra que é o céu e a terra. (1) Descobri que existe o bem e o mal em todas as coisas, nos elementos assim como nas criaturas, e que neste mundo o fraco se depara com o mesmo fato que o piedoso, tendo boa e má sorte; além do mais, que os bárbaros ocupam os melhores países do mundo, e são mais favorecidos pela fortuna do que os piedosos; fiquei muito abatido, não pude encontrar consolo nem mesmo nas Sagradas Escrituras, embora conhecesse a Bíblia do princípio ao fim. Talvez o demónio tenha tido o seu papel em tudo isso, pois eu frequentemente tinha pensamentos rudes, os quais não irei mencionar aqui (2).
"Quando meu espírito, cheio de sofrimento, movimentando-se como que numa grande tormenta, sinceramente surgiu em Deus, carregando consigo todo o meu coração e minha mente, com todos os meus pensamentos e com toda a minha vontade; quando
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eu não podia mais parar de lutar contra o amor e a misericórdia de Deus, a menos que sua Benção descesse sobre mim – ou seja, a menos que Ele iluminasse minha mente com Seu Espírito Santo, para que eu pudesse compreender a Sua vontade e me livrar de minha dor, então a luz do Espírito rompeu das nuvens. Enquanto que em meu fervor, lutava poderosamente contra os portais do inferno, como se tivesse mais forças do que as que estavam em minha posse, desejando arriscar a própria vida (que teria sido insuportável, sem o auxílio de Deus); após duras lutas contra os poderes das trevas, meu espírito rompeu as portas do inferno, e penetrou a essência mais íntima da Divindade recém-nascida, onde foi recebida com grande amor, tal qual aquele oferecido por uma noiva ao receber seu amado noivo. As palavras não podem expressar a grande satisfação e triunfo que experimentei então; tampouco poderia comparar tal satisfação com qualquer outra coisa, senão com o estado no qual a vida nasce da morte, ou com a ressurreição do morto. Durante este estado, meu espírito imediatamente viu através de todas as coisas, e reconheceu à Deus em todas as coisas, até mesmo nas ervas e nas pragas, e soube o que era Deus e qual era a Sua vontade. Então, minha vontade cresceu rapidamente nessa luz, e recebi um forte impulso de descrever o estado divino." (Aurora, XIX. 4) (3).
Na verdade, ninguém pode entrar no reino do céu (quer dizer, no auto conhecimento espiritual e na alegria inexprimível) senão aquele que renasceu no Espírito; ninguém pode renascer a menos que morra inteiramente para todos os sentidos da vontade própria, deixando de ser uma pessoa e começando a ser pura alegria, puro conhecimento.
Perceber essa verdade; saber que uma personalidade limitada, sujeita às condições do tempo e do espaço, não pode abarcar a alegria e a sabedoria infinita, é evidenciar que todas as tentativas de adquirir a sabedoria divina, na medida em que se liga ao eu, não é bem sucedida. De fato, ninguém deve buscar o conhecimento espiritual com o propósito de render a si mesmo, mas deve procurar morrer com o Cristo, ou seja, tornar-se inteiramente um com a verdade; já não é ele quem vive, mas a verdade vive nele. Não se deve buscar o reconhecimento, a renovação ou a satisfação, mas orar para que seu conhecimento lhe seja arrancado de si, a menos que ele leve à glorificação de Deus nele. Em resumo, ele não deve desejar se tornar nada, mas deve ser o novo conhecimento, alegria, sabedoria e a glória. Boehme diz:
"Eu nunca desejei saber nada sobre os mistérios divinos, nem compreendo como posso busca-los ou encontrá-los. Tudo o que busquei foi o coração de Jesus Cristo (o centro da verdade), onde devo me ocultar e encontrar a proteção da temível cólera de Deus; peço a Deus sinceramente que me conceda o Seu Espírito Santo e a Misericórdia, que Ele possa me abençoar, conduzir e afastar de mim tudo o que nos separa, a fim de que eu não viva em minha vontade própria, mas na Dele. Engajado nessa busca e nesse desejo sincero, a porta me foi aberta, de modo que em um quarto de hora, vi e aprendi mais do que se estivesse estudado por muitos anos nas universidades." (Cartas, XII 6,7).
"Não sou um mestre da literatura ou das ciências deste mundo, mas um homem de mente simples. Nunca desejei aprender ciência alguma, mas desde tenra idade busquei a salvação de minha alma, e descobrir como poderia herdar ou possuir o reino do céu. Encontrei em meu interior um poderoso contrarium, ou seja, os desejos pertencentes ao corpo e ao sangue; Ingressei numa árdua batalha contra a minha natureza corrupta, e com o auxílio de Deus, decidi superar a vontade demoníaca que havia herdado,
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vencê-la e penetrar totalmente no amor de Deus no Cristo. Daquele momento em diante, resolvi considerar-me como um morto quanto a minha forma herdada, até que o Espírito de Deus tomasse forma em mim, para que Nele e através Dele, pudesse conduzir a minha vida. Isso era praticamente impossível, mas permaneci firme em minha sincera resolução, travando uma dura batalha contra mim mesmo. Enquanto buscava e lutava, com o auxílio de Deus, uma luz maravilhosa surgiu em minha alma. Era uma luz completamente estranha à minha natureza descontrolada; nela reconheci a verdadeira natureza de Deus e do homem, a relação existente entre eles, algo que nunca havia compreendido, e que nunca teria buscado". (Tilk. 20-26).
A compreensão da verdade de que nada somos, mas que Deus é tudo, é o princípio da verdadeira fé, que forma a base do verdadeiro conhecimento e o primeiro passo no caminho do desenvolvimento espiritual.
Querer, desejar, saber, depositar a vontade, não fazer nada além do que Deus quer, deseja, sabe ou faz no homem e através do homem é a verdadeira resignação; é a mais profunda humildade para a mente carnal; é, ao mesmo tempo, a glorificação de Deus no homem, e portanto o estado mais elevado que se pode alcançar.
"Espero continuamente pelo meu Redentor, desejando me submeter inteiramente à Ele, seja o que quer que Ele faça. Se Ele quiser que eu saiba qualquer coisa, então quero saber; mas se Ele não quer, então não desejo saber. Nele coloquei a minha vontade, meu conhecimento, minha ciência, meu desejo e a minha realização". (Cartas, VIII.60).
"Centenas de vezes já orei à Deus, implorando para que Ele tirasse de mim todo conhecimento, caso esse não servisse para a Sua glorificação e para o melhoramento das condições de meus irmãos, e para que Ele apenas me mantivesse junto ao Seu amor. Mas quanto mais eu oro, mais o fogo interno se inflama, e em tal estado de ignição registro meus escritos". (Cartas, XII.60).
Só a iluminação interior da mente pela luz da Verdade eterna e nenhum outro estado ou condição, constitui a verdadeira teosofia. Não se trata de aprendizagem intelectual de qualquer espécie, nem de moralidade, nem em ser piedoso ou virtuoso, nem de pertencer à qualquer Igreja ou sociedade, nem em humanitarismo, ou em qualquer coisa que possa ser realizado pelo homem; a teosofia é o auto conhecimento de Deus no homem, a iluminação da mente pela luz do Cristo, a própria Verdade eterna. Não é um "ramo da teologia" como afirmam alguns, nem um sistema de pensamento, nem uma escola, onde segredos desconhecidos são revelados, mas trata-se da própria sabedoria divina, sem qualquer outra qualificação. Está muito além de qualquer concepção meramente humana, inconcebível ao intelecto racional, e, portanto não pode ser explicada. É o que há de mais secreto, o que não pode ser conhecido por ninguém, senão por aquele que a experienciou; aquele que vive inteiramente no reino da animalidade ou no intelecto especulativo, não acredita que tal estado seja possível; de fato, ele é inatingível para qualquer pessoa; pois aquele que a penetra, deixa de ser uma pessoa, exceto no que diz respeito à sua aparência e forma externa, ou seja, todo sentido de personalidade se perde, deixando-se de existir no campo de sua consciência interior.
Torna-se desnecessário repetir que este estado não pode ser penetrado pelo exercício da vontade própria do homem animal; nem pode ser produzido para ele através de algum estudo intelectual; não depende de sua condição social, educação, profissão, ou
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qualificações na vida, mas chega ao homem única e exclusivamente através da misericórdia e graça de Deus. Isso significa a presença da luz divina, presença que depende da própria presença. Boehme diz:
"Agrada ao Supremo revelar seus segredos através do tolo, olhado pelo mundo como sendo um nada; percebe-se que seu conhecimento não procede destes tolos, mas Dele. Portanto, peço que considerem meus escritos como sendo os de uma criança a quem o Supremo manifestou Seu poder. Há tanto dentro deles, que nenhum tipo ou quantidade de argumentação ou raciocínio pode compreender ou alcançar; mas para os iluminados pelo Espírito, sua compreensão é fácil, e não passa de uma brincadeira de criança". (Cartas, XV 10).
"O entendimento nasce de Deus. Não é produto de escolas onde a ciência humana é ensinada. Não condeno o aprendizado intelectual, e se eu tivesse obtido uma educação mais elaborada, com certeza isso seria uma vantagem para mim, quando minha mente recebia o dom divino; mas agrada à Deus, transformar a sabedoria deste mundo em tonteira, e dar Sua força ao fraco, a fim de que todas as coisas se curvem diante Dele". (Forty Questions, XXXVII 20).
O intelecto racional nada tem haver com as percepções naturais, mas é usado para trazer as idéias recebidas da percepção clara da verdade numa forma requisitada; e como a mente está numa posição mais elevada do que a condição normal, é comum acontecer que ao retornar ao estado inferior ela não compreenda, e nem mesmo se lembre das idéias expressadas durante aquele intervalo.
"Digo isso diante de deus, e testemunho diante de Seu julgamento, onde todas as coisas devem aparecer, que no meu eu humano, nada sei do que devo escrever; mas quando escrevo o Espírito dita aquilo que devo escrever, e me mostra tudo com tão maravilhosa clareza, que nunca sei se tenho minha consciência neste mundo ou não. Quanto mais eu busco, mais eu encontro, estou continuamente penetrando mais profundamente; sempre penso que minha pessoa pecadora era muito inferior e indigna para receber o conhecimento de mistérios tão exaltados e elevados; mas em tais momentos, o Espírito levanta o seu estandarte, dizendo: "Olhe! Aqui deves viver eternamente e ser coroado. Por que estais aterrorizado?" (Cartas, II. 10).
"Algumas vezes posso escrever com mais elegância e com um melhor estilo, mas o fogo que queima dentro de mim, me impulsiona. Minha mão e minha caneta tentam seguir os pensamentos, da melhor forma possível. A inspiração vem como uma chuva abundante. Aquilo que alcanço, eu tenho. Se fosse possível alcançar e descrever tudo o que percebo, meus escritos seriam mais explícitos". (Cartas,X45).
Compreendemos come essas palavras, que as obras verdadeiramente inspiradas são bem diferentes daquelas produzidas por meio comum; no primeiro caso, o visionário percebe as verdades que irá expressar, enquanto que no segundo caso o intermediário é ainda uma máquina inconsciente, ou sente uma inspiração sem conhecer a natureza da fonte de onde surgem.
Não se deve supor que uma pessoa, enquanto habitar um corpo físico, dependente, até certo ponto, das condições externas, poderia estar o tempo todo num estado espiritual superior, necessário para perceber a glória eterna do reino de Deus em sua plenitude; mas deve haver, necessariamente, um retorno do estado inferior de consciência. Boehme diz:
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"Assim como o relâmpago surge no centro, e num momento desaparece novamente, o mesmo ocorre com a alma. Quando durante sua batalha ela penetra as nuvens, vê a face de Deus como um raio de luz; mas as nuvens do pecado logo se juntam à sua volta, encobrindo sua vista". (Aurora, XI. 76).
"Parte da natureza da alma tem sua origem na natureza, parte em Deus. Na natureza há o bem e o mal; o homem, através de suas tendências pecadoras, tornou-se sujeito ao que é ígneo na natureza; sua alma tornou-se diária e a cada momento marcada pelo pecado. Portanto, o poder da alma de reconhecer a verdade eterna não é perfeita". (Aurora, Prefácio, 100).
"Enquanto Deus me guia com Sua mão protetora, entendo aquilo que escrevi; mas quando Ele se oculta, não reconheço meu próprio trabalho; isso prova a impossibilidade de penetrar os mistérios de Deus sem o auxílio do Espírito Santo". (Cartas, X. 29).
Se a mente carnal não pode compreender a linguagem do Espírito, como então poderia chegar a um verdadeiro reconhecimento da verdade através de seu próprio raciocínio? Tal raciocínio chega, na melhor das hipóteses, a uma opinião sobre o que a verdade não é, mas não a uma percepção do que ela é. Quem quiser compreender tais escritos, deve penetrar o espírito do autor. O raciocínio puro não irá ajudar.
"Esses escritos transcendem o horizonte do raciocínio intelectual, e seu significado interior não pode ser alcançado através da especulação e da argumentação; é preciso que a mente esteja num estado semelhante à Deus, iluminado pelo Espírito da Verdade". (Cartas, XVIII. 9). (4)
"Se alguém deseja me seguir na ciência das coisas, das quais escrevo, que sigam os vôos de minha alma e não os de minha caneta." (Three Principles, XXIV. 2).
Esse vôo para as regiões da liberdade eterna é impossível para aquele que está amarrado com as correntes forjadas pela ilusão do "eu"; inatingível para aqueles que buscam um conhecimento de Deus, a fim de satisfazerem suas curiosidades, ou com algum outro objetivo egoísta.
"Acima de tudo, examine consigo mesmo, o propósito de conhecer os mistérios de Deus, e se estais preparado a empregar aquilo que receber para a glorificação de Deus e para o benefício do próximo. Você está pronto para morrer inteiramente para sua vontade terrestre e egoísta, e desejas, sinceramente ser um com o Espírito? Aquele que não tiver tais propósitos elevados, e busca apenas um conhecimento que satisfaça o seu eu, ou para ser admirado pelo mundo, não está apto a receber tal conhecimento". (Clavis, II. 3).
Esse estado não é atingido sem dura batalha contra os poderes das trevas.
"Se alguém deseja me seguir, que não seja intoxicado pelos pensamentos e desejos terrestres, mas que seja cingido pela espada do Espírito, pois terá que descer à terrível profundidade, por não dizer ao meio do reino do inferno. É muito duro lutar contra o demônio entre o céu e a terra, por ele ser um poderoso senhor. Durante tais batalhas passei por experiências amargas, que encheram meu coração de dor. Freqüentemente o sol desaparecia da minha vista, mas depois surgia novamente e quanto mais o sol se punha, mais lindo, claro e magnífico era o seu raiar". (Aurora, XIII. 20).
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Aquele que não deseja nada para si mesmo, a ele tudo será dado. O infinito não pode ser contraído, a fim de ser compreendido pela mente finita do homem; a mente do homem é que deve se expandir através do poder do Espírito, tornando-se consciente de sua infinidade e assim irá conceber a verdade infinita.
"O conhecimento espiritual não pode ser comunicado de um intelecto para outro, mas deve ser buscado no Espírito de Deus. Na verdade, os escritos teosóficos irão até mesmo transmitir ao intelecto, algum raio de reconhecimento; mas se o leitor for considerado indigno, por Deus, de ter a luz divina inflamada em sua própria alma, então ele só ouvirá as inexprimíveis palavras de Deus". (Cartas, IV. 8).
"Quem lê esses escritos e não pode compreendê-los, não deve colocá-los de lado, imaginando que nunca serão compreendidos. Deve buscar mudar a sua vontade, elevar sua alma à Deus, rogando-lhe a graça e a compreensão, e então ler novamente. Com certeza, irá perceber mais verdade do que antes, até que por fim o poder da vontade de Deus se manifeste nele, atraindo-o para as profundezas, para o fundamento supranatural – isto é dizer, na eterna unidade de Deus. Então ele irá ouvir as reais mas inexprimíveis palavras de Deus, que irão conduzi-lo através da radiação divina da luz celestial, mesmo com as formas mais grotescas da matéria terrestre, e daí novamente de volta para Deus; e o Espírito de Deus irá buscar todas as coisas nele e com ele". (Clavis, Prefácio, 5). (5)
CAPÍTULO II
A UNIDADE DE TUDO
"Somos todos um só corpo em Cristo e todos temos o Espírito de Cristo ao nosso alcance. Se, portanto, penetrarmos o Cristo, poderemos ver e conhecer todas as coisas pelo poder de Seu Espírito". (Forty Questions, XXVI. 5).
O que é finito não pode receber o infinito; aquilo que tem um começo não pode conceber aquilo que não tem começo nem fim. Quem já mediu o espaço? Ele tem um fim? E se tivesse, o que há além do limite do espaço? Mas se não há fim para o espaço, não nos perderíamos ao tentar penetrar a sua profundidade? Não podemos conceber o espaço infinito, mas podemos conceber as formas limitadas, que é o objetivo do espaço representado; ao descrevermos uma forma descrevemos o espaço num certo estado ou condição. Do mesmo modo, não podemos descrever o que existe eternamente em Deus, nem o eterno processo que ocorre continuamente na vida divina, senão falando como se houvesse um começo no tempo, usando termos terrestres, mesmo sendo estes inadequados para produzir uma concepção daquilo que não pode ser concebido pela mente terrestre, porque se encontra infinitamente acima de todas as coisas terrestres.
"Não posso descrever a totalidade da divindade como se fosse um círculo, porque Deus é imensurável; no entanto, a Divindade não é inconcebível ao espírito que repousa no amor de Deus. Tal espírito pode atingir a verdade eterna, de parte em parte e desta forma, acabará compreendendo a totalidade". (Aurora, X. 26).
"Se tenho que tornar compreensível a geração eterna, a revelação ou a evolução de Deus, fora de Seu próprio ser sou obrigado a usar uma maneira diabólica (sabidamente errônea), como se a Luz eterna tivesse se se inflama nas trevas, e como se a Divindafe tivesse um princípio. Não posso instrui-los de outra forma, se pretendo
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que vocês adquiram uma concepção aproximada da Divindade. Não há nada primeiro e nada depois na geração e evolução, mas ao descrevê-la tenho que colocar uma coisa depois da outra". (Aurora, XXIII. 17-33).
"Não pretendo dizer que a Divindade teve um princípio; só desejo mostrar como a Divindade revelou-se através da natureza. Deus não tem princípio no tempo; Ele tem um princípio eterno e um fim eterno". (Signature, III. 1).
"A Divindade é um laço eterno, que não pode perecer. Ela gera a si mesma de eternidade em eternidade, e o primeiro ali é sempre o último, e o último o primeiro". (Three Principles, VII. 14). (6)
Aquilo que está sujeito às condições do tempo concebe as coisas temporais; só o que é eterno no homem pode conceber a existência do eterno.
"Não podemos falar a língua dos anjos, mesmo se pudéssemos tudo pareceria como se estivéssemos falando sobre seres criados, para os habitantes deste mundo, e diante da mente terrestre se apresentaria como algo terrestre. Somos apenas parte do todo; só podemos conceber e falar de partes, mas não do todo". (Threefold Life, II 66).
"Advirto ao leitor, que toda vez que falar da Divindade e de seu grande mistério, não compreenda o que digo como se pretendesse que fosse compreendido num sentido terrestre, mas tome isso de um ponto de vista elevado, num aspecto supra natural. Freqüentemente sou forçado a dar nomes terrestres ao que é celeste, para que o leitor possa formar um conceito, e ao meditar sobre ele possa penetrar no fundamento interno". (Grace, III 19).
Deus é auto existente, auto suficiente, Vontade infinita, e não tem origem. A Vontade, concebendo a si mesma, cria um espelho dentro de seu próprio ser. O mesmo ocorre no microcosmo do homem. Ao conceber o seu próprio ser o homem cria um espelho no qual "sente" o seu próprio ser, dando início à sua auto consciência e compreendendo sua existência como um ser individual.
"Dentro do não fundamento (que alguns escritores denominam de ‘Não-Ser’ – um termo sem nenhum significado) não há nada senão tranqüilidade eterna, um eterno repouso sem começo e sem fim. É verdade que mesmo ali Deus tenha uma vontade, mas essa vontade não pode ser objeto de nossa investigação, já que qualquer tentativa de investigá-la produziria pura confusão em nossa mente. Concebemos essa vontade como constituindo o fundamento da Divindade. Ela não tem origem, mas concebe a si mesma em si mesma". (Menschwerdung, XXI. 1).
"A Inteligência Divina é uma vontade livre. Ela nunca se origina do poder ou através do poder de qualquer coisa. Ela é ela mesma, e reside unicamente dentro de si, sem ser afetada por qualquer coisa, porque não há nada fora ou anterior á ela". (Mysterium, XXIX. 1).
"A Liberdade Eterna possui a vontade, e é a vontade. Na vontade há um desejo de realizar ou um impulso de desejar alguma coisa. Não há nada além dessa vontade, para o que tal impulso pudesse ser dirigido. A vontade portanto vê em si mesma como na eternidade; ela vê o que é, e assim cria em si um espelho". (Forty Questions, I.13).
Através desse reflexo eterno, ou Deus vendo a si mesmo, dentro de Si mesmo, a auto consciência divina, ou seja, o auto conhecimento de Deus, ou em outras palavras, a
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sabedoria divina, existe. A Vontade eterna, em seu aspecto de Pai, concebe eternamente de si, o aspecto de Filho e se re-expande como Espírito Santo. O mesmo processo, em menor escala, ocorre no microcosmo do homem: pois se ele se encontra, em si mesmo, penetrando o abismo infinito dentro de si, encontra na auto consciência de sua própria humanidade, o poder e a força, que ao se expandirem tornarão poderosa a sua vontade, podendo agir até à distância imensurável.
É dito que, quanto mais fundo mergulharmos, penetrando nosso próprio centro, mergulhando na fundação infundada de nossa própria alma, a ponto de nossa personalidade ficar completamente perdida; mais alto, seremos exaltados no reino do ser divino e universal.
"Deus é a vontade da sabedoria eterna, a sabedoria eternamente gerada Dele, em Sua revelação. Essa revelação ocorre através de um espírito ternário. Primeiro através da Vontade eterna, em seu aspecto de Pai; depois, através da Vontade eterna em seu aspecto de amor divino, o centro ou o coração do Pai; e finalmente através do Espírito, o poder que emana da vontade e do amor." (Mysterium I. 2,4).
"O Pai é a vontade do não fundamento (Absoluto). Essa vontade concebe em si mesma o desejo de manifestar-se. Esse amor ou desejo é o poder concebido pela vontade ou Pai, dentro de si – ou seja, o Filho, coração ou morada (a primeira fundação dentro da não fundação ou não fundamento), o primeiro princípio dentro da vontade. A vontade é falada através da concepção de si mesma, e essa emissão da vontade em fala ou respiração é o Espírito da Divindade". (7) (Mysterium, I.2).
"A primeira vontade inconcebível, sem qualquer origem, gera em si mesma o único e eterno Deus – uma vontade conceptível, sendo o filho da vontade sem causa, mas igualmente eterna com a primeira. Esta outra vontade é a sensibilidade e conceptibilidade da vontade primordial, pela qual aquilo que não é nada se encontra como sendo algo. Ao fazer isso, a vontade inconcebível sem causa, emerge o que encontrou eternamente, penetrando um estado de meditação eterna sobre seu próprio ser. A primeira vontade sem causa é chamada de Pai eterno; a vontade concebida e gerada do não fundamento é seu Filho congênito; a emissão da vontade insondável através do Filho concebido é o Espírito. Assim, a vontade única do Absoluto, através da concepção primeira, eterna e sem princípio, manifesta uma atividade ternária, mas permanece sendo uma vontade indiferenciada". (Grace, I 5-12).
Esse reflexo eterno, ou Deus encontrando a Si mesmo em Si mesmo, pode ser chamado de imaginação divina. Ela é tão infinita como o Espírito trino, encontrando-se naquele espelho infinito da sabedoria divina, mas permanece um mero poder passivo com relação à vontade ativa. No mesmo sentido, a mente do homem não é o homem propriamente dito, e sua imaginação é ou deveria estar sujeita à sua vontade; um homem sem o poder de pensar ou imaginar é inconcebível, e não poderia existir como um ser humano.
"A primeira atividade em Deus é a contemplação divina ou sabedoria, pela qual o Espírito de Deus, com seus poderes exalados, atua como um poder único e uniforme. Não tem começo nem fim, mas é infinito, e seu poder formativo não tem limites". (Grace, I. 14).
Deus, em seu aspecto de Pai ou vontade criativa, é, portanto o elemento ativo ou masculino na criação, enquanto que a divina sabedoria, a mãe, é o princípio produtivo
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passivo, desprovida de qualquer vontade própria, mas atuando inteiramente de acordo com a vontade do pai, que está nela. É verdadeiro que a vontade do Pai nada produziria se não fosse pela presença da mãe, em quem as formas estão envolvidas – ou, para expressar em outras palavras, Ele não poderia criar nada se não tivesse a sabedoria para tanto; mas toda a sabedoria no mundo não cria nada, a menos que se torne ativa através da vontade.
"A sabedoria coloca-se diante de Deus como um espelho ou reflexo, onde a Divindade vê seu próprio ser e todas as grandes maravilhas da eternidade, que não tem começo, nem fim, no tempo, cujo princípio e o fim são eternos. A sabedoria é uma revelação da Santíssima Trindade; isso não deve ser compreendido como se ela revelasse a si mesma à Deus, através de seu próprio poder ou escolha, mas o centro divino, o coração e essência de Deus, torna-se revelado nela. Ela é como um espelho da Divindade, e como qualquer outro espelho, simplesmente permanece quieta; ela não produz imagem alguma, mas simplesmente a concebe". (Menschwerdung, I, 1, 12).
Aquilo que o Pai deseja conceder eternamente, a mãe deseja receber eternamente.
A vida é masculina, a terra ou a "matéria", feminina. A terra não faz a semente crescer, mas a semente plantada na terra carrega consigo o poder de crescer; a terra simplesmente fornece o material que a vida na semente extrai da terra. Do mesmo modo, a mãe não cria o filho, mas fornece os materiais necessários ao espírito criativo existente na criança, o qual, antes de nascer, atrai do organismo da mãe tudo o que necessita; podemos comparar essa extração, ao modo como ela extrai o alimento do sei da mãe depois de nascer. (8)
"A sabedoria é a panavra revelada do poder divino, conhecimento e santidade, uma antítese da insondável unidade na essencialidade, onde o Espírito Santo forma uma imagem. Ela é passiva, mas o Espírito de Deus é ativo, como a alma no corpo". (Clavis, V. 18).
Essa Trindade eterna é inconcebível quanto a seu aspecto de potencialidade espiritual, do mesmo modo que um fogo é inconcebível se não queima; mas assim como o fogo que queima se revela por meio da luz e do calor, o poder divino revela-se num aspecto ternário na natureza eterna.
"O Espírito ternário é uma unidade, um único ser; ou falando mais corretamente, não um ser, mas Razão eterna; conseqüentemente um mistério comparável à inteligência do homem, que também é incompreensível". (Mysterium, I. 5).
"Deus em seu aspecto primitivo não deve ser concebido como um ser, mas como um poder ou inteligência constituindo a potencialidade para ser – uma vontade insondável e eterna, onde tudo está contido e que embora sendo tudo é um, mas desejoso de revelar-se e de entrar num estado de ser espiritual. Isso ocorre através do fogo no desejo do amor, ou seja, no poder da luz". (Mysterium, VI 1).
"Não temos porque falar que Deus é três pessoas, nesse ponto, mas Ele é ternário em sua evolução eterna. Ele dá nascimento a Si mesmo na trindade; nesse desdobramento eterno continua sendo um ser, nem o Pai, nem o Filho, nem o Espírito Santo, mas unicamente a vida eterna ou Deus. A vontade ternária torna-se compreensível em Sua 35
eterna revelação, só quando Ele revela a Si mesmo por meio da natureza eterna – ou seja, na luz através do fogo". (Mysterium, VII 9 – 12).
Na tranqüilidade da liberdade eterna, o Pai ainda não aparece como um pai. Ele só aparece como pai quando está desejoso de criar, concebendo em Si a vontade de gerar a natureza em Si mesmo". (Threefold Life, IV 64).
Não podemos conceber um homem sem qualquer tipo de corpo, nem um Deus universal sem uma natureza universal. A exata essência que constitui o "homem" é vontade e inteligência manifestando-se em uma forma humana. Deus só começa a existir como um ser quando se manifesta na natureza. É desta forma que Deus tem se revelado desde toda a eternidade; a causa desta auto revelação repousa primeiramente na vontade de Deus, na Trindade e na ânsia da sabedoria eterna.
"Sobre a eternidade não podemos falar de outra forma senão como de um espírito, pois tudo era espírito no princípio; mas esse espírito também tem se envolvido num ser, desde toda a eternidade". (Menschwerdung I 2).
"Aquilo que é tranqüilo e sem ser, repousa em si mesmo, não contém as trevas, mas é uma felicidade lúcida, clara e calma. Isso é, pois a eternidade, sem nada mais, e significa acima de tudo Deus. Mas como Deus não pode existir sem um ser, Ele concebe em Si mesmo uma vontade, e essa vontade é amor". (Threefold Life, II 75).
"A totalidade do Ser divino está num estado de contínua e eterna geração, comparável à mente de um homem, mas imutável. Os pensamentos nascem continuamente da mente de um homem, e deles surgem o desejo e a vontade. Do desejo e da vontade surge a ação, e as mãos realizam suas obras, de modo a se tornar substancial. Desta forma, a ação está com a evolução eterna". (Three Principles, IX 35).
"No princípio, a vontade é fraca como um nada; depois, ela deseja e aspira a ser algo e a manifestar-se. Esse nada faz com que a vontade entre num estado de desejo; esse desejo é uma imaginação. A vontade observando-se no espelho da sabedoria faz com que sua própria imagem apareça no não fundamento, criando o fundamento em sua própria imaginação". (Menschwerdung, II 1).
"A Sabedoria, a virgem eterna, a companheira de Deus para Sua honra e alegria, torna-se cheia de desejo de observar as maravilhas de Deus, contidas em si mesma. Devido a esse desejo, as essências divinas dentro dela tornam-se ativas e atraem o santo poder; é assim que a sabedoria entra num estado de ser permanente; sua inclinação repousa no Espírito Santo. Ela simplesmente movimenta-se diante de Deus com a finalidade de revelar as maravilhas de Deus". (9) (Three Principles, XIV. 87).
A possibilidade da revelação de Deus, de forma corpórea ou externa, repousa no poder mágico divino, que existe dentro da própria vida divina. É o poder da vontade mágica de produzir aquilo que deseja.
"O poder mágico é o Espírito desejoso de ser. Não é essencialmente nada senão vontade, mas entra em existência. Este é o maior mistério; está acima da natureza e faz com que a natureza tome formas, segundo a forma de sua vontade. Ela introduz o fundamento no abismo do não fundamento, transformando o nada em algo. É a mãe da eternidade e da essencialidade de todos os seres. Nela estão contidas todas as formas dos seres. Não é o intelecto, mas atua segundo a vontade do intelecto. Não é a majestade, nem os poderes propriamente ditam, mas um desejo penetrando na
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natureza escura (matéria) e procedendo através da natureza escura no fogo, e através do fogo para a luz. Através deste poder mágico as maravilhas do número Três revelam-se através da natureza". (Six Mystical Points, V. I – II).
"A corporalidade de Deus resulta de Sua essencialidade. Essa essencialidade não é espírito, mas é como se fosse uma impotência, se comparada com o poder onde o Três reside. Essa essencialidade é o elemento de Deus, onde está a vida, mas não a inteligência". (Threefold Life, V . 53).
A tese pressupõe a antítese. No Um não há relação. Não pode haver consciência manifesta sem algo do que se tenha consciência, e sem aquilo que deve ser a consciência. Sem a natureza não poderia haver a liberdade da natureza; sem o positivo não haveria o negativo; sem a base obscura do fogo, não haveria luz.
"O Um não tem nada em si que poderia desejar; tal unidade tampouco poderia sentir o seu próprio ser. Isso só é possível num estado de dualidade". (Theosophical Questions, III. 3).
"Se tudo fosse apenas um, esse um não poderia manifestar-se. Se não houvesse angústia, a alegria não poderia ser conhecida". (Mysterium, IV. 22).
"Deus introduz Sua vontade na natureza, a fim de revelar Seu poder na luz e na majestade, para constituir um reino de alegria. Se não houvesse uma natureza originando-se na unidade eterna, não haveria nada mais do que a tranqüilidade eterna. A natureza entra num estado de dor, a tranqüilidade transforma-se em movimento, e os poderes tornam-se audíveis como as palavras". (Grace, II . 16).
O Um, o "Sim", é puro poder, e a vida e a verdade de Deus, ou o Deus propriamente dito; mas Deus seria irreconhecível a Si próprio, e haveria nele nenhuma alegria ou percepção, se não fosse pela presença do "Não". Esse é a antítese ou o oposto ao positivo ou a verdade; ele faz com que a verdade torne-se revelada, o que só é possível por ser o oposto, onde o amor eterno pode se tornar ativo e perceptível". (Theosophical Questions, III. 2)
"Se existe luz é porque existe fogo. O fogo produz a luz, e a luz é o fogo manifesto; ela recebe a natureza do fogo em si e reside no fogo". (Mysterium, XL . 2)
"A alegria entra no estado de desejo com a finalidade de produzir um amor ígneo, um reino de alegria, que não poderia existir na tranqüilidade". (Signature, VI. 2)
"A majestade de Deus não se revelaria com todo poder, alegria e magnificência, se não fosse pela atração causada pelo desejo. Do mesmo modo, não haveria luz, se o desejo não fosse penetrante e obscurecedor, criando um estrado de trevas, que cresce até que ocorra a ignição do fogo". (Grace, II. 14)
O bem relativo não pode existir sem o mal relativo, o mal não existe sem o bem. O fogo não pode existir sem a luz, assim como a luz não pode existir sem o fogo. Nenhuma multiplicidade é possível sem a unidade. Cada uma requer e deseja a outra.
"A Luz e as trevas são opostas, mas há entre elas um vínculo, de modo que nenhuma poderia existir sem a outra". (Threefold Life, II. 86)
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"Em Deus há dois estados, eternos e sem fim, a luz eterna e as trevas eternas. A luz é Deus, e nas trevas não haveria dor se não fosse pela presença da luz. A luz faz com que as trevas anseiem pela luz e com isso sofra a angústia". (Three Principles, IX.30)
"A vontade emergindo do estado de unidade (ao assumir uma posição contra a unidade, desejando seu próprio ser) entra num estado de desejo; esse desejo é magnético, ou seja, interiorizador, mas a unidade como tal é exteriorizadora; ela deseja exprimir-se, a fim de tornar-se revelada. Tendo a vontade sido expressada do estado de unidade, deseja penetrar a si mesma, de modo a alcançar sensações na unidade, e para que com isso, a unidade possa alcançar a sensação na vontade". (Theosophical Questions, III. 9)
"A vida-luz tem seu impulso e movimento próprio, assim como o fogo-vida; mas esse gera a primeira, que é o senhor da segunda. Se não houvesse fogo, não haveria nem luz, nem espírito; e se não houvesse espírito para soprar sobre o fogo, esse seria extinto e as trevas governariam. Nenhum dos dois seria nada sem o outro; ambos são dependentes um do outro". (Forty Questions, I. 62).
Contudo, não há igualdade entre essa dualidade, porque a unidade é superior à multiplicidade, a liberdade é superior à natureza, a luz ao fogo; o elevado sempre governa o inferior.
"A vontade é como uma vida insensível, mas encontra o desejo, e querendo o desejo se constitui num ser. A vontade é superior ao desejo, pois embora o desejo seja uma causa excitante para a vontade, a vontade é uma vida sem uma causa e é também inteligência. É, portanto, senhor do desejo. Ela rege a vida do desejo e o usa como convém. Essa vontade-espírito eterna, sabemos ser Deus, mas a vida ativa do desejo é a natureza eterna". (Inner Mystery, i I, III 2).
"Deus é desde a eternidade Poder e Luz, e é chamado Deus por causa disso, mas não de acordo com o espírito-ígneo. Quanto a esse, não falamos dele como Deus, mas como ‘a cólera de Deus’ e a parte de Seu poder que consome. A luz de Deus também possui a qualidade do fogo, mas em nela a cólera é transformada em amor; ódio e amargor doem numa humilde beneficência e doce desejo ou satisfação". (Menschwerdung, i 5-16).
"A fonte do amor é uma detentora e mantenedora da corrente colérica, um superar do poder áspero, pois a brandura afasta o comando do poder duro e pungente do fogo. A luz da paz mantém as trevas aprisionadas e reside nas trevas. O poder rigoroso deseja unicamente o colérico e o aprisionamento na morte; mas a brandura emerge como um doce crescimento, ela desabrocha e supera a morte, dando a vida eterna". (Threefold Life, II 92).
"Quando o amor revela-se na luz através do fogo, corre pela natureza e a penetra, como o brilho do sol penetra uma erva ou o fogo penetra o ferro". (Clavis, VIII 36).
Para compreender o que foi dito acima, basta perceber tais coisas dentro de seu próprio ser. Para o intelecto especulativo permanecerão sempre um mistério.
Não é no tronco, na raiz, nos galhos ou nas folhas, mas somente na flor de uma planta é que se pode encontrar os germens que produz o fruto ou a semente do qual uma nova planta de qualidade similar possa crescer. Do mesmo modo, não é nas paixões do homem, nem em suas aquisições intelectuais, mas unicamente no florescimento
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espiritual de sua alma, onde existe o germe para o ser recém nascido capaz de obter consciência de sua própria imortalidade.

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