CAPITULO XII - Resposta à segunda pergunta: que apetites são suficientes para causar à alma os danos de que falamos.
1. Poderíamos estender-nos longamente neste assunto da noite dos sentidos, pois teríamos muito que dizer sobre os prejuízos que os apetites trazem à alma, não somente pelas maneiras já explicadas, mas ainda sob muitos outros pontos de vista. Todavia, com relação ao fim que nos propomos, desenvolvemos suficientemente o assunto. O leitor deve ter compreendido, parece-me, por que denominamos noite a mortificação dos apetites, e quanto importa atravessar esta noite para ir a Deus. No entanto, poderia surgir uma dúvida sobre o que foi dito; vamos então responder, antes de tratar da maneira de penetrar na noite dos sentidos.
2. Pode-se perguntar, em primeiro lugar, se qualquer apetite é suficiente para produzir na alma as duas espécies de males, a saber: o privativo que consiste em privar a alma da graça de Deus, e o positivo que produz os cinco danos já referidos. Em segundo lugar, se um apetite qualquer, por mínimo seja, é suficiente para trazer à alma todos os cinco danos de uma só vez, ou então se cada um deles produz seu dano particular; por exemplo, um traz o tormento, outro a fadiga e um terceiro a cegueira, etc.
3. Respondendo à primeira pergunta: só os apetites voluntários que são matéria de pecado mortal podem operar, e na verdade operam de maneira total, este dano privativo, porque roubam à alma a graça nesta vida e na outra, a glória, que é a posse de Deus. À segunda pergunta respondo: cada apetite voluntário, não só em matéria de pecado mortal, mas também em matéria de pecado venial, ou ainda de faltas consideradas como simples imperfeições, é suficiente para causar de uma vez todos os danos positivos. Embora sob determinado ponto de vista, possam chamar-se privativos, nós os denominamos aqui positivos porque correspondem à conversão da alma para a criatura, como o privativo corresponde ao seu afastamento de Deus. Mas observemos a diferença: os apetites que levam a pecado mortal produzem cegueira completa, tormento, nódoa e fraqueza absolutas, etc. Mas os que não passam de pecado venial ou de imperfeições voluntárias não produzem estes danos em grau tão excessivo, pois não privam da graça; só os causam em parte e em grau menor, proporcionado à tibieza e ao relaxamento que introduzem na alma. Portanto, quanto maior a tibieza, mais aumentarão os tormentos, a cegueira e as manchas.
4. Deve-se notar: se cada apetite traz consigo todos os males que denominamos positivos, há alguns que causam diretamente certos danos, embora produzam, de maneira indireta, todos os outros. Por exemplo: conquanto o apetite sensual cause todos os males reunidos, o seu efeito próprio e principal é manchar a alma e o corpo. O apetite de avareza os produz igualmente a todos, mas cria direta e especialmente a aflição. O apetite de vangloria igualmente os faz nascer a todos, mas causa principal e imediatamente as trevas e a cegueira. E se o apetite da gula gera todos os males, o seu principal resultado é trazer tibieza na virtude; e assim por diante.
5. Se todos esses efeitos reunidos redundam na alma em resultado de um ato qualquer de apetite voluntário, é pela sua oposição aos atos da virtude, que produzem na alma os efeitos contrários. Como a virtude produz suavidade, paz, consolação, luz,pureza e força, assim o apetite desordenado causa tormento, cansaço, fadiga, cegueira e fraqueza. E como a prática de uma só virtude aumenta e fortalece todas as outras, assim, sob a ação de um único vício, todos os vícios crescem, e multiplicam na alma as suas conseqüências. Sem dúvida, todos esses tristes resultados não se manifestam no momento em que se satisfaz o apetite, porque o gosto então sentido não permite percebê-los. A sua má influência, porém, se manifesta antes ou depois. Temos exemplo disso no Apocalipse, onde se narra que o Anjo mandou S. João comer aquele livro cujo sabor na boca lhe foi doce, e no ventre se lhe tornou amargo (Apoc 10, 9). Quem se abandona aos apetites sabe por experiência que, no princípio, apaixão parece doce e agradável e que, somente mais tarde, se produzem seus efeitos cheios de amargor. No entanto, não ignoro a existência de pessoas tão cegas e endurecidas que não lhes sintam os efeitos; pouco ciosas de se inclinarem para Deus, não percebem os obstáculos que dele as afastam.
6. Não trato aqui dos apetites irrefletidos da natureza, dos pensamentos que não passam de primeiro movimento ou das tentações não consentidas, porque tudo isso nenhum dos ditos males causa à alma. Embora a pessoa que por essas coisas passa julgue estar manchada e cega, por causa da perturbação e paixão que tais tentações lhe causam, não sucede deste modo: antes, lhe trazem os proveitos contrários. Ao resistir, adquire força, pureza, luz, consolação e outros muitos bens, segundo a palavra de Nosso Senhor a São Paulo: «A virtude se aperfeiçoa na enfermidade» (2 Cor 12, 9). Os apetites voluntários, porém, causam à alma todos os males de que já falamos e maiores ainda. Eis por que o principal cuidado dos mestres na vida espiritual deve ser mortificar logo a seus discípulos em qualquer apetite, ensinando-lhes a ficar na privação do que desejavam, a fim de os livrar de tanta miséria.
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