quinta-feira, 24 de março de 2011

S. J. da Cruz - A Subida ao Monte Carmelo I


Canção I

Em uma noite escura,
De amor em vivas ânsias inflamada,
Oh! ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
Já minha casa estando sossegada.
1. A alma, nesta primeira canção, canta a ditosa sorte e ventura que teve em sair das coisas criadas e livrar-se dos apetites e imperfeições existentes na parte sensível do homem em virtude do desregramento da razão. A exata compreensão desta doutrina, porém, exige que se saiba não ser possível à alma alcançar o estado de perfeição sem passar ordinariamente por duas espécies principais de noites, denominadas pelos mestres da vida espiritual vias purgativas ou purificações da alma. Aqui as chamamos «noites», porque, numa e noutra, a alma caminha às escuras como de noite.

2. A primeira noite ou purificação se realiza na região sensitiva da alma: será explicada nesta canção e na primeira parte deste livro. A segunda noite, que visa as faculdades espirituais, será tratada na segunda canção e na segunda e terceira partes no que diz respeito à atividade da alma. Quanto à purificação passiva, trataremos dela na quarta parte.

3. Esta primeira noite refere-se aos principiantes, quando Deus os começa a pôr no estado de contemplação; dela também participa o espírito, como a seu tempo diremos. A segunda noite ou purificação refere-se aos já aproveitados, quando Deus os quer pôr no estado de união com Êle; e esta é mais obscura, tenebrosa e terrível purificação, conforme explicaremos mais adiante.
EXPLICAÇÃO DA CANÇÃO
4. A alma revela sumariamente, nesta canção, que saiu, levada por Deus, só por amor dele e inflamada neste amor, para procurá-lo em uma noite escura. Esta noite é a privação e a purificação de todos os seus apetites sensitivos relativamente a todas as coisas exteriores deste mundo, aos prazeres da carne como também aos gostos da vontade. Este trabalho é feito pela purificação dos sentidos; e por isso diz ter saído «quando sua casa se achava sossegada», isto é, tendo pacificada a parte sensível, e todos os apetites nela adormecidos; porque, em verdade, não pode sair das penas e angústias dos cárceres dos apetites sem estes estarem mortificados ou adormecidos. Ditosa ventura foi «sair sem ser notada», isto é, sem que qualquer apetite da carne, ou outra qualquer coisa pudesse impedi-la, por ter saído «de noite», isto é, quando Deus a privava de todos os apetites. A esta privação, a alma chamava «noite».

5. Foi verdadeiramente «ditosa ventura» para ela o ter-se deixado levar por Deus nesta noite na qual lucrou tantos bens. Seria incapaz de nela entrar com os próprios esforços, pois é bem difícil acertar alguém a desprender-se por si mesmo de todos os seus apetites, para chegar à união com Deus.

6. Em resumo, tal a explicação da canção. Daremos, agora, a cada verso o seu desenvolvimento, declarando o que vem a nosso propósito. Do mesmo modo faremos com as demais canções, como ficou dito no prólogo, isto é, primeiro cada canção e depois cada verso.

CAPÍTULO II  -  EM UMA NOITE ESCURA

1. A purificação que leva a alma à união com Deus pode receber a denominação de noite por três razões. A primeira, quanto ao ponto de partida, pois, renunciando a tudo o que possuía, a alma priva-se do apetite de todas as coisas do mundo, pela negação delas. Ora, isto, sem dúvida, constitui uma noite para todos os sentidos e todos os apetites do homem. A segunda razão, quanto à via a tomar para atingir o estado da união. Esta via é a noite verdadeiramente escura para o entendimento. Enfim, a terceira razão se refere ao termo ao qual a alma se destina, — termo que é Deus, (ser incompreensível e infinitamente acima das nossas faculdades – NT: palavras tomadas da “edição príncipe”) e que, por isso mesmo, pode ser denominado uma noite escura para a alma nesta vida. Estas três noites hão de passar pela alma, ou melhor, por estas três noites há de passar a alma a fim de chegar à divina união.

2. No Livro de Tobias são elas figuradas pelas três noites que, em obediência ao Anjo, o jovem Tobias deixou passar antes de se unir à esposa. O Anjo Rafael ordenou-lhe que queimasse, durante a primeira noite, o coração do peixe, símbolo de um coração afeiçoado e preso às coisas criadas. A fim de começar a elevar-se a Deus deve-se, desde o início, purificar o coração no fogo do amo divino e aí deixar consumir-se tudo o que é criatura. Esta purificação põe em fuga o demônio que tem poder sobre a alma apegada às coisas temporais e corporais.

3. Na segunda noite o Anjo disse a Tobias que seria admitido na companhia dos santos Patriarcas, que são os Pais da . A alma, do mesmo modo, após passar a primeira noite figurada pela privação de todos os objetos sensíveis, logo penetra na segunda noite. Aí repousa na solidão da  que exclui, não a caridade, mas todas as notícias do entendimento; pois, como adiante diremos, a  não cai sob os sentidos.

4. Afinal, durante a terceira noite, foi prometida a Tobias a bênção. Esta bênção é o próprio Deus que, pela segunda noite — a da  — se comunica à alma de forma tão secreta e íntima, que se torna uma outra noite para ela. E, como veremos depois, esta última comunicação se realiza numa obscuridade mais profunda que a das outras duas noites. Passada esta terceira noite, — que é quando se acaba de fazer a comunicação de Deus ao espírito, ordinariamente em grande treva para a alma, — logo se segue a união com a esposa, que é a Sabedoria de Deus. O Anjo disse a Tobias que após a terceira noite se unisse com a esposa no temor do Senhor, para significar que quando o temor é perfeito o amor divino também o é, e a transformação da alma emDeus por amor logo se opera.

5. Para compreensão, vamos explicar com clareza cada uma dessas noites; observamos, porém, que as três são uma só noite dividida em três partes. A primeira noite — a dos sentidos — pode ser comparada ao crepúsculo: momento em que já não mais se distinguem os objetos entre si. A segunda noite — a da  — assemelha-se à meia-noite, quando a obscuridade é total. A terceira, finalmente, comparada ao fim da noite, e que dissemos ser o próprio Deus, precede imediatamente a luz do dia.

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