domingo, 29 de maio de 2016

A ESTRUTURA DA MENTE


“Seria desperdício de tempo e esta reunião de todo inútil se considerássemos o que se tem dito até agora, e o que se vai dizer, como mero entretenimento intelectual. Quando se necessita de qual­quer espécie de estímulo, a mente se torna lerda, embotada, incapaz de pensar com rapidez, e se nos estamos servindo destas palestras apenas como uma nova espécie de estimulante, acho que seria prefe­rível não realizá-las. Por outro lado, se somos capazes de examinar profundamente os movimentos de nosso pensar, na vida diária, e de começar a compreender o “processo” de nossa própria mente, então, talvez, sejam realmente úteis estas reuniões.

Mesmo quando repetimos certas palavras de profunda signifi­cação, vivemos, em geral, bem perfunctoriamente; vivemos num mundo verbal, num mundo de ações e emoções superficiais. Nossa mente é sem profundidade, mesquinha, estreita, e um dos problemas mais importantes da vida é como tornar essa mente profunda, rica, cheia. A mente “ carregada” de conhecimentos não é uma mente rica; só o é a mente que penetrou fundo em si mesma e descobriu seus pró­prios e inumeráveis recessos, suas secretas ideias e motivos, e é capaz de penetrar e transcender o pensamento.

Estou empregando a palavra “mente” não só para denotar a mente superficial que está ativa todos os dias, mas também a mente inconsciente, a mente que oculta tantas compulsões e “ motivos” , aquela que busca o preenchimento dc secretos desejos, que está cônscia de suas frustrações, suas aptidões, suas limitações, e sempre a buscar, sempre a sondar. Refiro-me à totalidade da mente, tanto à mente consciente como à inconsciente. Pouco sabemos dessa totalidade, por­que em maioria funcionamos nas camadas superficiais da consciência; estamos ocupados completamente a respeito de nosso emprego, da rotina de nossa vida, de crenças, dogmas e fácil recitação de orações — coisas a que a mente superficial se apega porque lhe são conve­nientes, proveitosas, e com isso nos damos por satisfeitos.

Agora, se pudermos aprofundar-nos no inteiro processo da mente, penetrar fundo no inconsciente, talvez então possamos descobrir por nós mesmos toda a extensão e limitação da faculdade de pensar. O inconsciente, por certo, não é um mistério, uma coisa que temos de aprender com os psicólogos ou com os que estudaram filosofia. Ele é parte integrante de nossa existência diária e está constantemente a indicar algo, a fornecer sugestões, mas acontece que nossa mente su­perficial acha-se sempre tão ocupada, tão atarefada com seus próprios problemas triviais, que não lhe sobra tempo ou atenção para receber essas sugestões; mas a mente oculta lá está. Ela não é mais sagrada nem mais divina do que a mente consciente, porquanto as duas fazem parte do processo total de nossa consciência, e, para podermos trans­cender as limitações dessa consciência, devemos compreender suas pe­culiaridades.

Em geral, julgamos ser necessário passarmos por essa luta e con­flito, por pesares e frustrações várias; que é preciso a mente disciplinar-se; que certas coisas devem ser superadas ou rejeitadas a fim de se alcançar um degrau transcendente à mente, mas não me parece possível transcendê-la dessa maneira. Para se descobrir o que está além da mente, cumpre investigá-la em profundidade e compreender os seus movimentos; porque a mente que não compreendeu de todo a si própria projeta ideias, ilusões, que assumem uma falsa realidade. En­quanto eu não compreender as características de minha própria mente, as características do “eu”, todo impulso a buscar baseia-se nos desejos, nos “motivos” da mente. Dessarte, se não se compreenderem realmente as peculiaridades da mente, é impossível descobrir o verdadeiro. Eu posso dizer que existe um Atman, uma “superalma” , uma realidade atemporal, mas isso será uma mera repetição baseada em meu condi­cionamento, minha crença, e sem validade alguma. Enquanto eu não compreender toda a esfera de meu pensamento, todo o conteúdo de minha mente, não é possível ir além; e nós temos de ir além, por­quanto, se não descobrirmos algo totalmente novo, a vida se torna mecânica, superficial, estéril.

Assim, como pode a mente compreender a si mesma? Existe, dentro da esfera da mente, uma entidade superior à mente? Com­preendeis, senhores? Existe, dentro do processo do pensamento, uma entidade que está acima e além do pensamento e que, por conse­guinte, é capaz de controlar o pensamento? Ou essa coisa a que cha­mamos Atman, o “sublime” , “a alma”, é mera invenção do pen­samento e, consequentemente, está compreendida na esfera do pensa­mento? Considero importante compreender isso; porque, se existe uma superentidade, um agente exterior que transcende todo o processo de pensamento, então nada adianta pensarmos a respeito dele, por­quanto não se acha em sua esfera. Só podemos pensar acerca de coisa que já conhecemos e que podemos reconhecer; mas, para se encontrar o que se acha além da mente, o pensamento terá de cessar.

A maioria de nós crê — não é verdade? — em algo existente além da mente, um observador que observa não só a mente mas tam­bém as coisas da mente; que controla, molda, disciplina o pensamento. Enquanto não pusermos em dúvida a existência de tal entidade trans­cendente à mente, transcendente à esfera do pensamento, continuare­mos a considerar essa entidade como o princípio que guia a nossa vida e molda a nossa conduta.

Ora, existe tal entidade — Atman, alma, ou o que quiserdes — , a qual nos está moldando, dirigindo e ajudando a viver uma vida sã e equilibrada? Ou essa entidade se encontra dentro da esfera de nosso próprio pensar, sendo uma invenção de nosso próprio pensa­mento e, por conseguinte, irreal? A mente é produto do tempo, de experiências inumeráveis, resultado de muitos condicionamentos. O comunista não crê em Atman, na alma, porque foi condicionado para crer diferentemente, assim como vós fostes condicionados para crer que existe uma alma, um Atman. Vós, tal como ele, partis de um postulado, uma asserção, resultantes ambos de uma mente condicio­nada. Enquanto não se perceber realmente esse facto e não for profun­damente compreendido o seu significado, a mente é incapaz de trans­cender a si própria; ou, expressando-o diferentemente, o pensamento nunca pode estar tranquilo, a mente nunca pode estar completamente quieta, porque existem sempre “ observador” e “coisa observada” ; há sempre o experimentador a desejar mais experiência, e assim se torna a nossa vida a infindável série de lutas que realmente é.

Ao terdes uma experiência aprazível, desejais repeti-la; e quando a experiência é dolorosa, vós, como “experimentador”, desejais afastar a dor. O pensador abre a porta ao prazer e repele a dor, e por isso trava-se uma perene batalha interior, a qual se torna bem óbvia quando examinais a vós mesmos. Entretanto, tendes a ideia de que o pen­sador, o observador, existe acima e além do pensar. Credes, porque o lestes em vossos livros religiosos que o Atman ou a alma existe e está observando o pensamento. Mas, se examinardes com atenção, vereis que quando não há pensar não há pensador; quando não há exigência de mais e mais experiência, nem acumulação de experiência, não há “experimentador”. Convencionou-se que existe uma entidade trans­cendente a tudo isso. Essa entidade, porém, ainda é resultado do pensar, e, por conseguinte, está compreendida na área do tempo; logo, ela não é atemporal, nem divina.

Afinal, que é a mente? Por favor, senhores, não vos limiteis a escutar minhas palavras, minhas explicações ou descrições, porém observai vossa própria mente em funcionamento. Eu não vos estou dando instruções positivas, pois, como já expliquei, todo pensar posi­tivo é, realmente, um estado “sem pensamento” (thoughtlessness). Já se puderdes pensar negativamente, ou seja observar vossa mente sem a dirigirdes, sem lhe dizer o que fazer — porque o “dirigente” , a entidade que diz “ isto é correto, aquilo é errado”, faz também parte da mente — se puderdes simplesmente observar a vossa mente, sem nada exigirdes, sem traduzir o que vedes, descobrireis então que essa própria observação é esclarecedora, porque a mente não está então buscando um resultado, nem se preocupa com recompensa ou punição; ela deseja apenas observar, saber o que é verdadeiro. E não se pode saber o que é verdadeiro se existe um “dirigente” já moldado pelo passado, por um certo condicionamento. Portanto, escutai, a fim de descobrir por vós mesmos; e só podereis fazê-lo ao observardes vossa mente, isto é, quando a mente observar a si própria.

Ora, que é a mente? Ela não é apenas uma série de reações aos vários desafios que estão sempre a assaltar-nos, mas também uma série de lembranças, conscientes ou inconscientes, as quais estão cons­tantemente moldando o presente em conformidade com o condiciona­mento do passado, para ajustá-lo a um padrão futuro. Observai a vós mesmos, senhores, não escuteis e não repitais apenas as minhas pa­lavras. Observai-vos e vereis que vossa mente é uma série de desejos, mais o impulso a preenchê-los — e isso envolve medo e frustração. Desejo uma coisa, não a consigo, sinto-me frustrado, desditoso. Vós me amais, eu não vos amo, por conseguinte me sinto frustrado, etc., etc.

A mente é também uma série de ideias relacionadas com o pas­sado e com os nossos desejos; isto é, a mente pensa em termos de progresso. Sou isto, quero ser aquilo, e necessito de tempo para chegar lá. Se sou invejoso, digo que necessito de tempo para alcançar o estado de “não-inveja” — e chamamos isso progresso, evolução. Mas o é, realmente? Tende a bondade de observar vossa mente em funcionamento. Pode o pensamento “progredir” para a Verdade, a Realidade, Deus, ou só pode mover-se do “conhecido” para o “conhe­cido” ? E o pensamento é independente da memória, ou, simplesmente, repetição desse fundo constituído pela memória?

Tudo isso constitui o conteúdo da mente, sendo a mente o cons­ciente e o inconsciente. No inconsciente estão armazenadas as memórias raciais bem como as experiências individuais que não com­preendi; e todas essas lembranças, coletivas e individuais, martelam a mente, nesse processo que chamamos pensar, não é exato? O desejo, o medo, a frustração, o desejo de agir, de melhorar, de procurar preencher-se em alguma ambição, o pensar que existe Atman, uma “superalma” ou que nada disso existe — eis o que constitui a mente.

Ora, se não compreendeis a totalidade do “eu” , isto é, se a mente não compreende a totalidade de si própria, sua atividade estará sempre restrita à esfera que ela própria criou. A menos que a mente se liberte de seu condicionamento, tanto consciente como inconsciente, não po­derá haver investigação real, porque vossa busca será conforme o vosso condicionamento, e vossas experiências de acordo com vosso “fundo” (background). As experiências de um homem que tem visões do Cristo, de Krishna, disto ou daquilo, estão obviamente baseadas no seu “fundo”, sua tradição. Assim, a mente que está em busca do verdadeiro, que deseja descobrir se existe a Verdade, a Realidade, Deus, deve estar livre de seu “fundo”; e, se não descobrimos o que é ver­dadeiro, nossa vida se torna um padrão mecânico, porventura modi­ficado por circunstâncias, porém sempre um padrão mecânico, a que chamamos “progresso”, “evolução”.

Agora, tratemos de ir um pouco mais longe. Cônscia de sua própria totalidade, percebe a mente que todo esforço feito para alterar a si própria faz parte ainda do mesmo padrão, embora modificado. Compreendeis? A mente que busca a liberdade, por exemplo, é uma mente que criou a ideia da liberdade e persegue essa ideia. Conhe­cendo apenas a escravidão, diz ela: “Devo ser livre” — e luta então pela liberdade. Deste modo, sempre pensamos que o esforço é neces­sário para se ser livre; mas, se compreendemos que o esforço só existe quando a mente separou a si própria como “entidade que for­ceja”, como “observador”, como “pensador”, separado da escravidão, vê-se então que o esforço é fútil. Exato, senhores?

Deixai-me expressá-lo mais simplesmente. Minha mente está escravizada a uma tradição, e desejo libertar-me dela, pois vejo quanto é absurdo a mente estar escravizada a alguma coisa. Mas, no momento em que eu disse: “A mente deve ser livre” — que aconteceu? Criei o esforço, não? E o esforço é em conformidade com o novo padrão daquilo que desejo ser.

Consideremos diferentemente. Se não há “observador” separado da “coisa observada”, como pode haver esforço? Só há esforço quando existe um observador tentando alterar a coisa observada. Mas, se com­preenderdes que o observador é a coisa observada (e não se trata de uma fórmula intelectual, pois é uma extraordinária experiência cons­tatar que não há pensador separado do pensamento), vereis que não há esforço de espécie alguma. Verifica-se então um processo intei­ramente diferente, uma maneira completamente diversa de observar o que chamamos inveja, ou o que quer que se observe. Enquanto houver observador fazendo esforço para alcançar um certo estado, tem de haver conflito, e não é por meio de conflito que nasce a compreensão.

Ora, esse processo total é a mente; e quando a mente compreende seu “processo” total, ela se torna quieta, extremamente tranquila, porque não há desejo de ser ou de não ser. Essa mente não é posta tranquila, ou induzida a ficar tranquila, mas se torna tranquila por­que compreendeu o conteúdo de si própria. Só então é possível descobrirdes por vós mesmos se existe a Realidade ou não. Enquanto vossa mente não houver alcançado esse estado, vossas asserções de que existe ou não a Realidade, Deus, ou o Atman, nada significam. São puras repetições por parte de uma mente condicionada e que, como disco de gramofone, repete seguidamente a mesma frase.

O autoconhecimento, pois, é essencial, mas não pode ser encon­trado nos livros; o autoconhecimento resulta do observarmos a nós mesmos no espelho das relações, o qual revela o funcionamento total da mente. Só depois de havermos compreendido a totalidade da mente, existe a tranquilidade.

Pergunta: No processo do pensar, temos de “retirar” de nosso depó­sito de conhecimento e experiência. Não estais fazendo a mesma coisa? Por que então condenais o conhecimento e a experiência?

Krishnamurti: Eis, senhores, uma pergunta muito interessante, por­que, se a examinarmos com muito cuidado, ela será grandemente reve­ladora.

As palavras são necessárias para as comunicações. Se eu falasse chinês, por exemplo, não poderíeis compreender-me. Portanto, as pa­lavras que têm um significado comum para vós e para mim constituem um meio de comunicação. Estas palavras estão armazenadas na mente, na memória. Isso é um facto.

Outro facto é que a maioria de nós tem experiências as mais va­riadas, guardadas na memória, e desse “fundo” de memória procedem as reações. Se não soubésseis onde morais, é evidente que estaríeis sofrendo de algum desarranjo grave. O conhecimento é uma série de experiências, não só individuais mas também coletivas. O conheci­mento científico, o conhecimento baseado em vossas próprias expe­riências, as experiências resultantes de vosso condicionamento próprio — tudo isso foi depositado na mente, como memória. Isto constitui o “fundo”, não é verdade? E a maioria de nós funciona de acordo com esse fundo. Isto é, se fui educado como hinduísta, se esta é minha tradição, meu “fundo” (background), e me encontro com um muçul­mano, minha reação é imediata: antipatizo com ele, embora possa mostrar-me tolerante, porque sou civilizado. Assim, quando me en­contro com uma nova pessoa, eu reajo de acordo com meu condicio­namento, e ela reage conforme o seu. Tal é o nosso estado, não?

Ora, o interrogante indaga: “Por que condenais o conhecimento e a experiência?” Eu não estou condenando nada. Preciso ter conheci­mento, para voltar para casa, para construir uma ponte, ou para comu­nicar-vos certas coisas. Preciso ter conhecimento, para não me deixar queimar. Se eu me deixasse queimar continuamente, seria um estúpido, um neurótico. O que eu digo é que a experiência baseada no conheci­mento, no nosso “fundo”, é meramente o prolongamento desse fundo e, por conseguinte, não é experiência nova. Isso, por certo, é simples. Se estou traduzindo todos os desafios nos termos de meu condiciona­mento, não há experiência nova. Só posso reagir ao desafio de maneira nova quando minha mente compreendeu o “fundo” e dele se libertou. Para que a mente possa descobrir qualquer coisa nova, não pode de­pender do conhecimento, o qual se baseia no condicionamento, na me­mória, na experiência, etc. E, assim, que aconteceu? O interrogante deseja saber se não estou fazendo a mesma coisa quando falo. Eu dependo de palavras para fazer comunicações, naturalmente. Mas existe algo mais que a pergunta implica, e que é: “ Não estais falando com base no conhecimento de alguma experiência passada que tivestes?” Vou explicar o que quero dizer.

Digamos que ontem me senti feliz. Assisti a um belo ocaso, com os morros escuros se desenhando contra o Sol poente, com uma árvore solitária cheia de passarinhos; foi uma coisa extraordinariamente bela para contemplar, para sentir. Agora, ao falar-vos desse entardecer, estou vivendo a lembrança dele, ou estou livre dessa lembrança e apenas descrevendo a experiência, sem seu conteúdo emocional? En­tendeis o que estou dizendo? Não?

Senhores, isto é muito interessante, e vós descobrireis alguma coisa se observardes vossa mente e não vos limitardes a ouvir minhas palavras. Vossa vida baseia-se nas pretéritas experiências e tais expe­riências moldam vosso presente pensar. Ora, é possível ficarmos num estado de experiência e não num estado de “ter tido uma experiência” ? Percebeis a diferença? São dois estados inteiramente diversos: o estado de experimentar e o estado de “ ter tido uma experiência”. O experi­mentar é um processo vivo, enquanto o outro não é, pois é lembrança de uma experiência acabada. De qual desses estados eu falo? É o que deseja saber o interrogante. Eu estou pensando para vós, não é verdade?

Ora, que acontece realmente com a maioria de nós? Não vos preocupeis comigo, por ora. Qual é o fato que se passa convosco? Vós estais pensando e vosso pensamento está baseado na experiência passada, que é o que chamamos conhecimento. Vossa mente, pois, está vivendo no passado; está vivendo da experiência que tivestes, ou da experiência que esperais ter, baseado ern vosso condicionamento, em vosso conhecimento. Estais alguma vez cônscio do outro estado, o “estado de experimentar” ? Ou só vos achais cônscio da experiência depois de terminada? Estais seguindo?

Vede, senhores, se sois felizes, tendes consciência dessa felicidade? Quando algo vos deleita, estais cônscios de “estar deleitado” ? No mo­mento em que sabeis que sois feliz, foi-se a felicidade. Ao estardes cônscios de ser virtuoso, acabou-se a virtude, é óbvio. Por conse­guinte, o cultivo da virtude é uma atividade egocêntrica e não é virtude nenhuma.

O interrogante deseja saber se eu falo baseado numa experiência passada de que me lembro e que vos comunico por meio de palavras, ou se o experimentar e o comunicar ocorrem simultaneamente. Está claro?

Expressando-me diferentemente, a palavra “amor” pode ser co­municada. Vós e eu conhecemos esta palavra. Agora, se alguma vez provastes o amor, podeis falar dessa experiência (baseado) no passado; mas se estais “vivendo” , se estais “experimentando” o amor, vós podeis comunicar isso, e esse é um estado inteiramente diferente do outro, que consiste em experimentar e depois comunicar. Se com­preendeis isso, se realmente percebeis a falsidade de um estado e a verdade do outro, então vossa mente se encontra num estado de con­tínuo experimentar, que não consiste em experimentar uma coisa e depois comunicá-la. A realidade é uma coisa viva, que não pode ser reconhecida por meio de experiência e depois comunicada por meio de palavras. Se estais sentindo uma coisa intensamente, vivendo-a, a comunicação é significativa, mas nenhum significado tem quando ti­vestes uma experiência e repetis a experiência de memória.

Senhores, quando repetis a palavra Atman, quando citais o Gita, o Upanishaâs e outros livros sagrados, a mente é tão só uma máquina repetidora; mas se a mente percebe a futilidade de tudo isso e é livre — não livre de alguma coisa, porém livre — , ela se acha então num incessante estado de experimentar. Compreendeis? Sempre há o estado de experimentar, por conseguinte, a mente permanece fresca, nova, “inocente”; e essa mente pode alcançar o Imensurável.

Pergunta: Encontramos a necessidade de disciplina até no nosso viver diário. A disciplina não é necessária para a adequada educação da juventude?

Krishnamurti: Senhor, que se entende por disciplina? Não vos ponhais na defensiva, pois não vos estou atacando; não me coloqueis na posição de acusador e a vós na de réu. Estamos procurando com­preender. Que se entende por disciplina? Não significa ajustar-se a um padrão estabelecido pela sociedade, ou que estabelecestes para vós mesmo? Esta é uma forma de disciplina. Disciplina significa também repressão. Tenho um certo sentimento, mas o guru, a autoridade, diz: “Não; deveis reprimi-lo”. Disciplina significa, também, criar um padrão para minhas ações, a fim de realizar minha ambição, não é verdade? Desejo ser “ o máximo” em alguma coisa, e por isso me disciplino de acordo com esta ambição.

Agora, que acontece quando vos reprimis, quando vos conformais, vos ajustais a um padrão? Que aconteceu à mente que se obrigou a ajustar-se a um molde? Sem dúvida, tornou-se uma mente morta, não uma mente viva. Assim como levantamos barreiras para impedir que o rio transborde e inunde toda a região, assim também a mente fica retida num determinado padrão. Para retermos a mente num padrão, necessitamos de disciplina, e por isso dizemos ser a disciplina essencial até em nossa vida diária.

Percebeis, senhores? Estou simplesmente investigando as impli­cações da disciplina. O que reprimis permanece no inconsciente e se mantém em ação de diferentes maneiras. Com a disciplina, apenas o recalcais mais ainda, proporcionando-lhe assim maior vitalidade para repetir-se em diferentes sentidos. Tudo isso está implicado na dis­ciplina, que achais tão necessária. Dizeis: “Se não me disciplino, levarei vida caótica, infeliz e estúpida”. — mas vós estais levando uma vida caótica, infeliz e estúpida, presentemente. Do mesmo modo, o edu­cador diz: “Temos de disciplinar a criança, pois vemos o que aconteceu aos universitários de toda a índia.” Mas é de disciplina que se neces­sita em nossa vida, ou é da compreenão de todo o processo da dis­ciplina? Compreensão que produzirá sua ordem própria, uma ordem não imposta pela sociedade ou a ambição. Na vida, a ordem é obvia­mente necessária, mas não a ordem consoante a tradição.

Ora, o interrogante indaga: “A disciplina não é necessária à adequada educação da juventude?” Que entendeis por educação? Ao dizerdes que precisais educar a criança, que significa isso? Quereis dizer, essencialmente, que ela precisa ser ensinada a ajustar-se à socie­dade, precisa aprender uma técnica para que possa obter emprego e seja capaz de ganhar a vida. Não é isso que interessa a todos vós? E ensinareis também a criança sobre a chamada religião — ou, se sois comunista, desejareis fazê-la aceitar o comunismo, etc., etc. Os governos, em todo o mundo, desejam que os que foram educados sejam eficientes, bem treinados para matar em nome da pátria, capazes de construir represas, ou possuidores de outras aptidões como enge­nheiros e técnicos; e a vós é também isso o que interessa. Desejais que o estudante se amolde ao modelo da sociedade, se submeta à tra­dição, e esteja habilitado a ganhar o próprio sustento; portanto, não estais verdadeiramente interessados na criança, não é exato? Só estais interessados no que ela deverá ser, e o governo, também, se interessa pela mesma coisa. E fazer que a criança se torne o que deverá ser, é isso que chamamos educação, não?

Percebendo todo esse processo, dizeis: “Como educar a criança diferentemente, criadoramente, sem inventar novos padrões, novos modos de condicionamento?” Antes de tratar disso, deveis primeira­mente descobrir se sois um educador, se sois um pai que realmente ama o filho — e eu duvido que ameis realmente vosso filho. Se o amásseis, não desejaríeis que se ajustasse a esta sociedade corrupta; pelo contrário, ajudá-lo-íeis a ser livre, para poder criar uma nova sociedade com valores bem diferentes. Se amásseis realmente vosso filho, acabaríeis com todas as guerras, e não pensaríeis em termos de autoridade hierárquica.

Se compreendêsseis tudo isso profundamente e tivésseis um real propósito, que faríeis como educadores, como pais? A vida é uma série de influências inevitáveis. Todo livro, todo jornal, tudo o que ledes, ouvis ou vedes, grava-se em vossa mente, que é moldada por essas influências, e escolheis uma influência, em oposição a outra, conforme vossa tradição, vosso ambiente, vossa sociedade. Assim, a criança é condicionada, desde o começo, por numerosas influências que a rodeiam, e o educador sábio lhas apontará, e desse modo a ajuda a ficar cônscia das influências e a libertar-se delas, sem criar um novo condicionamento que pensa ser mais nobre. Nenhum sistema, nenhum método pode ajudar a criança a ser livre das influências. O pai, assim como o mestre, deve estar atento para não se deixar colher por nenhuma influência, o que significa que deve ter uma mente vigilante; mas nem o pai nem o mestre tem uma mente vigilante. Em geral pensamos que a teremos com a criação de um novo método, um novo sistema, e contamos que o sistema, o método, a técnica nos ajudarão a ser livres — o que é uma impossibilidade. Só quando a mente do edu­cador, do pai, compreende a pleno o processo da disciplina com todas as suas implicações, só então é possível ajudar a criança a ser livre. A liberdade não está no fim, porém no começo.

Estou falando há uma hora e cinco minutos. Há ainda uma per­gunta. Permitis que a examine?

Assistência: Sim, senhor!

Krishnamurti: E isso significa que estais apenas escutando minhas palavras, sem observardes vossa própria mente. Se estivésseis prestando atenção à vossa mente e observando todas as coisas implicadas no que ouvistes, é claro que vos sentiríeis exaustos, porque vossa mente não está acostumada a manter-se intensamente vigilante, alertada. Não vos estou criticando, senhores; longe de mim tal impertinência, sinceramente falando. Mas, ao dizerdes: “Por favor, continuai”, isso indica muita coisa, porque, se tomásseis uma questão, como a disciplina, ou o que é “experiência”, e a examinásseis completamente, a seguísseis até o fim, não precisaríeis fazer mais pergunta nenhuma, pois teríeis encontrado a totalidade das perguntas e das respostas. Mas, infeliz­mente, a maioria de nós faz perguntas, esperando que, se juntarmos as numerosas partes, teremos o todo. O todo não pode ser compreen­dido através da parte. O todo deve ser visto diretamente.”


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